Fragmentos de guerra
Sob o frio cortante e a chuva insípida, o oficial das Forças Armadas regressou ao seu habitat familiar. Estava fardado e com a boina colocada geometricamente nos cabelos grisalhos. Adentrou no prédio, subiu as escadas em ritmo de marcha. As botas petrificadas com a encruzilhada de cordões queriam deixar a pegada em cada degrau. Defronte, o tapete desnivelado, a campainha disfuncional e a porta entreaberta. O vaivém, a incerteza, a incapacidade perante a tomada de decisão. A ponta do nariz correspondia à área limítrofe do espelho, as patilhas ladeavam-no in extremis e refletiam-se. Ajeitou-as, num perfeito sinal de nervosismo. As três décadas de ausência perpassaram aquela distância que o separava de casa. Estava ali, inerte, a pouco mais de cinco passos.
A todo o vapor, nos carris de um ferro dúctil e maleável, circulava um comboio oriundo da Europa Ocidental. Nos demais apeadeiros, soava o alerta. A algazarra do movimento saqueava os olhares dos mais jovens. No interior, centenas de pessoas: um tumulto de etnias, uma densidade no ambiente respirável, a ocupação da totalidade dos lugares sentados, ninguém viajava com os pés assentes na superfície. O ponto de partida cruzou dois olhares dispostos na extremidade de uma das inúmeras carruagens. À exceção do que sobejava, articulavam no mesmo idioma e concentravam-se no mesmo campo visual. Dois livros intermediavam o processo de dizer não sei o quê, porque ambos estavam à altura um do outro, como genuínos mártires da dissimulação.
Em casa, numa sala ampla e com vergonha da luz solar, alguém deitado sobre um tapete de pele. O hábito fazia-o, sem ser monge ou caminhar nesse sentido. Todos os santos dias, sem descuido, a tarde conservava-se com a cabeça disposta sobre a palma das mãos, de barriga para cima e com as pernas esticadas. Os sapatos, quase sempre imundos e trajados pela poeira, embatiam nas almofadas. A seu lado, um rádio desligado. Silêncio. Decorria a guerra, ouviam-se tiros de espingarda e de revólveres. As porcelanas e os móveis dançavam ao som do romper dos tanques, das chaimites. Os olhos destilavam lágrimas secas, queriam cerrar pálpebras, mas eram impedidos por algo indizível. Ali, tudo era deserto e montanha, não se sabia quem ganhava ou perdia, quantos mortos ainda viviam, quantos feridos não tinham cura ou quantos sedentários se tornariam nómadas. O temor moldava-lhe os gestos: o rádio permanecia quedado e sem voz. A pouco e pouco, resquícios de paz.
O comboio travou numa estação algures entre Espanha e Portugal. A rapariga levantou-se calmamente, o rapaz seguiu-lhe as manobras. Abandonaram o comboio lado a lado, como se houvesse intento. E havia. Esbracejaram um bom bocado, caminhavam em marcha, sincronizadamente, pé direito, pé esquerdo, sem o menor bramido, com o olhar lançado ao horizonte chuvoso. Desapareceram entre a multidão, naquela aura quase teatral. O vento não abalava o braço engatilhado, os chapéus sobre as cabeças e os sobretudos impermeáveis. A imponência (des)construiu-se assim.
O oficial decidiu, por fim, avançar. Mão na maçaneta, empurrão suave e, distraído pela alteração remodelar que a casa conheceu, deixa embater a porta com estrépito. Caminha em direção ao hall. As paredes não se resignavam e queriam segredar-lhe toda a mudança. Aliviar uma angústia expectável e impedir a sua progressão no terreno. Ao fundo do corredor esguio e longo, a esposa e um homem desconhecido – aos seus olhos – ritmados numa valsa tórrida de paixão.
Perdeu-se no rio de lágrimas. Ver e não querer crer. A paralisia das ações, dos movimentos, da fala. Regressou ao corredor, recompôs-se e não foi visto. Através da porta da cozinha, dirigiu-se à sala de estar. Cresceu em si um desejo de álcool, Bourbon. Para si, a melhor forma – ou a mais eficaz – de saborear a realidade. Copo em cima da cómoda, duas pedras de gelo, cocktail lacrimal em três dosagens e o alimento, até perfazer três quartos. Revirou o corpo e, pronto a sentar-se, encara uma criança estirada sobre o tapete e acompanhada do rádio silencioso. Sem conversação, apoderou-se dele e ligou-o afim de respeitar o mecanismo humano.
A guerra tinha acabado. Narrava-se a destruição total.