‘Free State of Jones’: o retrato de um dos mais valentes episódios da Guerra Civil norte-americana
Com realização de Gary Ross e com Matthew McConaughey no papel principal, Free State of Jones conta a história verídica de um grupo de renegados, desertores, escravos foragidos e mulheres.
Newton Knight, interpretado por Matthew McConaughey, foi o líder do movimento independente que gerou o Estado Livre de Jones. Numa altura em que o Estado do Mississippi declarou a saída da União e a aliança com o movimento dos Confederados, grande parte do povo ressentiu a decisão que beneficiava apenas os donos de escravos e plantações de algodão ou milho. Newt Knight partilhava desta opinião, e após ver o sobrinho morrer nas eventualidades da Guerra decidiu desertar, não conseguindo continuar a lutar por uma guerra que não era sua.
Knight viveu em exílio, juntamente com um pequeno grupo de escravos negros foragidos, e com o passar do tempo muitos mais a eles se juntaram, quer escravos, quer fugitivos do exército. No auge da Guerra este grupo de foragidos chegava já às centenas de pessoas, e aos poucos conseguiram reunir suplementos, armas e pessoas suficientes para fazer frente a fações locais da Confederação de forma a conseguirem tomar posse de várias cidades, criando um novo país, o Estado Livre de Jones.
Em Free State of Jones, a atenção ao detalhe está sempre presente, os factos históricos são representados com grande fidelidade e a prestação do elenco é bastante forte, num filme onde McConaughey volta a mostrar que não consegue desempenhar um mau papel, mostrando-nos um Newton Knight com garra, sentimento de injustiça, traição e uma coragem que estabelece paralelos com a de John Brown, figura icónica e que gera até hoje opiniões muito divididas nos cidadãos dos Estados Unidos. Brown, tal como Knight, foi um abolicionista americano que praticou ações armadas com o objetivo de abolir a escravidão nos Estados Unidos da América, e teve a sua história contada num clássico de Henry David Thoreau, A Desobediência Civil – Defesa de John Brown. A música John Brown’s Body chegou mesmo a ser cantada no filme por antigos escravos após o fim da Guerra Civil.
Focando-se não só nas batalhas entre os membros do Estado Livre de Jones e os Confederados que os consideravam traidores, Free State of Jones conseguiu de forma excecional mostrar todos os pontos chave da Guerra Civil, e todos os obstáculos que os milhares de desertores tiveram de superar por todo o sul dos Estados Unidos, como as batalhas contra o Governo, a dificuldade em adquirir comida e armas de fogo, as opiniões divididas muitas vezes entre os próprios foragidos sobre a escravatura, os ataques do Ku Klux Klan e a desilusão após a vitória da União quando o Presidente Johnson substituiu Abraham Lincoln.
Não sendo um filme documental, Free State of Jones conseguiu aliar uma quantidade de informação quase comparável à de um documentário com histórias pessoais e íntimas típicas dos dramas de Hollywood, conseguindo assim fazer um melhor papel do que o vencedor do Óscar de Melhor Filme 12 Years a Slave no que toca a espelhar a realidade de tempos volvidos, sendo também em quase todos os aspetos técnicos um filme mais coeso e interessante do que o filme de Steve McQueen.
Na realização do filme não existe quase nada a que o dedo possa ser apontado: o desempenho dos atores e atrizes foi de grande qualidade, onde se destacaram para além do protagonista Thomas Francis Murphy (12 Years a Slave, True Detective) e Mahershala Ali (House of Cards), a sonoplastia encaixou no filme como uma luva, o trabalho das câmaras foi exímio, exibindo técnicas bastante distintas que dotaram o filme de uma constante brisa de frescura e originalidade (o que foi extremamente bem vindo e necessário num filme com quase duas horas e meia). Já os cromatismos do filme foram abordados de maneira especial, quente e carinhosa, dando ao filme uma identidade única. Curiosamente, é também apenas aqui que se pode criticar o filme, pois por vezes esta originalidade e criatividade cromática encontrou-se perdida e sem um fio condutor, causando quebras drásticas na imagem do filme.
Resumindo, este filme conseguiu de forma digna representar a dura realidade da Guerra Civil americana para quem não tinha nenhum interesse pessoal investido nela, as disparidades de tratamentos e os horríveis crimes contra a humanidade cometidos durante a guerra. Como qualquer outro filme de época que se prese, também Free State of Jones deixa uma mensagem forte que nos leva a ponderar não só o passado, mas também a realidade em que nos encontramos, e este é um filme que subtilmente nos ensina que a sociedade de hoje ainda tem muito que evoluir.