“Gambito de Dama”, a vida em xeque
Adaptação da obra de Walter Tevis (1983), “Gambito de Dama” é a mais recente jogada do realizador Scott Frank, conhecido pela sua passagem pela época western (“Godless”) e agora presença assídua na plataforma de streaming Netflix. Ao longo dos sete episódios desta minissérie, entrega-nos o mundo em torno dos 64 quadrados que constituem o tabuleiro de xadrez, assim como os duelos que se defrontam dentro e fora dele.
Esta é a história de Beth, que se reinventa inúmeras vezes, não sendo, portanto, transparente afirmar qual o momento determinante do seu começo. Seguindo uma lógica cronológica, após um acidente fatal que causou a morte da mãe, e com o pai fora de cena, aos 8 anos vai viver para um orfanato, no qual ganha não só o vício pelo xadrez, como pelos tranquilizantes (dados às crianças para as manter calmas e bem-comportadas). A correlação entre ambos não é uma mera casualidade. Atormentada pelos demónios de uma infância traumática e de um espírito singular, Beth vê no xadrez um mundo onde consegue manter o controlo e dominar o que lhe acontece, e nos comprimidos um escape para esse domínio. Os dois vão avançar lado a lado com Beth, até não mais serem compatíveis, forçando-a a encarar quem é e quem almeja ser.
Durante a sua estadia no orfanato conhece o solitário Mr. Shaibel (Bill Camp), que depois de lhe ensinar as bases do jogo depressa reconhece que Beth é um prodígio do xadrez. Mais tarde, após ser adotada, cria uma relação de amizade e companheirismo com a mãe adotiva (Marielle Heller), que se apercebe do seu potencial enquanto jogadora e dos benefícios de enveredar por entre um mundo de vitórias, encorajando-a na sua paixão. Juntas viajam para os mais variados destinos em torneios de xadrez, através dos quais Beth ganha reputação no meio, quebrando estereótipos e tornando-se uma das adversárias mais temidas pelos seus oponentes. Paralelamente à evolução do jogo de Beth, dá-se uma jornada pessoal, como jogadora e como jovem mulher, através da qual cria amizades e rivalidades, deparando-se com desafios muito maiores do que aqueles que enfrenta no jogo e caminhando em direcção a um desfecho que tanto pode ser o seu triunfo, como o seu declínio.
Anya Taylor-Joy dá a cara, o corpo e a alma à protagonista da história, numa performance arrebatadora, em linha com o seu percurso cinematográfico até então (“The Witch”, “Split”). A audiência é seduzida tanto pela naturalidade com que encarnou Beth em todas as suas particularidades, como pelas jogadas que encabeça. Trata-se de um feito notável por parte da série, que cumpre a proeza de, não só ampliar a essência do xadrez até todos aqueles que nunca o jogaram como também o transforma num palco de batalhas, que rompem com uma ideia de monotonismo que para muitos envolve esta prática. Note-se que não seria justo não mencionar o restante elenco, pois cada uma destas personagens secundárias é igualmente uma peça chave da narrativa. Todos os que passam pela vida de Beth contribuem de alguma forma para o seu progresso, assim como todas as representações são admiráveis. Desde Marielle Heller, Harry Melling, Thomas Brodie-Sangster ou Moses Ingram, todos solidificam a estrutura desta produção e tornam cada episódio memorável.
A estética da série não fica apenas em segundo plano, prendendo o olhar do espectador por entre a alternância entre as cores cinzentas e sombrias alusivas ao período da guerra fria ou a momentos difíceis da vida de Beth, assim como tons vivos e mais quentes que se interligam com cenários de luxo, de júbilo ou euforia. A atenção ao detalhe de uma época revê-se por entre a decoração dos espaços e um guarda-roupa brilhante. A banda sonora é anos 60 em toda a sua glória, contando com nomes como The Monkees, Dionne Warwick, Donovan ou The Vogues, e envolvendo cada cena como se criada para esse efeito.
A narrativa desenrola-se a um ritmo eletrizante, cada momento é indispensável, cada pormenor faz a diferença. Os desfechos são, na sua maioria, imprevisíveis e se conseguimos adivinhar o resultado de algumas das partidas, fica o mérito de quem as traduziu, mesmo assim, numa experiência emocionante. Encontra-se um feminismo subtil na personagem de Beth, que encara a posição de igualdade da mulher com a naturalidade que lhe deveria ser reconhecida. Contudo, numa época ainda fortemente marcada por diferenças de género, a sua entrada num mundo de homens não encontra objecções.
Não obstante alguns traços determinantes da década, a inclusividade está de certa forma bastante vincada no xadrez. No momento do jogo gera-se um mundo num tabuleiro, onde todos cabem, onde todos são vistos como seus pares e no qual importa apenas a capacidade de jogar. De fora fica o que não tem relevância perante o poder de cada uma daquelas peças, barreiras como género, raça, idade, estatuto social, entre outros privilégios. Em comum há a paixão pelo jogo, e as histórias que versam sobre as paixões de uns confrontam-nos com as nossas. Quais são, o que significam para nós e, mais importante, o que fizemos nós por elas.