“García Márquez. História de Um Deicídio”: uma brilhante carta de amor

por Mário Rufino,    22 Dezembro, 2023
“García Márquez. História de Um Deicídio”: uma brilhante carta de amor
Capa do livro

Houve um antes de tudo, um período anterior antes de terminar com um murro que deixou Gabriel Garcia Márquez com um olho negro. Este duelo Perú-Colômbia, em 1976, teve mulher pelo meio, segundo consta. Suspeitas.  
O longo texto de amor a um homem e à sua obra, por Mário Vargas Llosa, é monumental. 
“García Márquez. História de Um Deicídio” (Quetzal; trad. Cristina Rodriguez e Artur Guerra) é a tese de doutoramento do Nobel da Literatura peruano, apresentada em Madrid. 

A obra de Gabo começa na infância. São as histórias da avó, a figura paternal do avô, e as circunstâncias sociais que vão formando a imagética que virá a ser realizada em “Cem Anos de Solidão”, O Outono do Patriarca” ou “Crónica de Uma Morte Anunciada”, entre outros livros. 
A análise desde a raiz ao fruto acontece com paciência de Penélope e o carinho de um grande amigo. Vargas Llosa começa exactamente na infância, dá o contexto social e analisa as questões estilísticas do texto.  

“À falta de melhor, Aracataca vivia de mitos, de fantasmas, de solidão e de nostalgia. Quase toda a obra literária de García Márqueza é elaborada com esses materiais que foram o alimento da sua infância. Aracataca vivia de recordações quando ele nasceu; as suas ficções viverão das suas recordações de Aracataca. (…) Nos arredores da povoação havia uma quinta de bananeiras que se chamava Macondo. Este será o nome que dará mais tarde à terra imaginária cuja «história» Cem Anos de Solidão relata, do princípio ao fim.”  

A intertextualidade é descodificada sem ponta de arrogância. Está lá, clara e sem metalinguagem académica. Até numa tese de doutoramento Vargas Llosa sabe como envolver o leitor numa história bem contada. 

As ferramentas utilizadas para clarificar a textualidade em Gabo vão da vertente sociológica, familiar, política, influências literárias, o contexto universitário até à idade adulta. Os anos de pobreza e os empregos ténues e instáveis são difíceis, mas também proveitosos. As oportunidades para escrever e “fazer a mão” vão surgindo até o traço que conhecemos estar formado. Para essa formação, o jornalismo foi essencial. García Márquez trabalhou como jornalista no período designado, pelos sociólogos, como “a primeira onda de violência” na Colômbia. Os diversos trabalhos deram-lhe mundo para além de Barranquilla, e reportagens como “Relato de Um Náufrago” não seriam possíveis sem essa experiência. 

No entanto, é na rebelião contra a realidade, contra a divindade, contra a criação de Deus, que se situam os seus romances. 

“A base da sua vocação é um sentimento de insatisfação com a vida; cada romance é um deicídio secreto, um assassínio simbólico da realidade.” 

Depois de “García Márquez. História de Um Deicídio”, a experiência do leitor das obras do autor colombiano vai ser diferente. Aquelas camadas que até então estavam interditas, por falta de conhecimento, estarão expostas à luz de Vargas Llosa. O leitor ganha com isso, o leitor ganha com a leitura deste livro extraordinário que revela tanto do autor como do tema estudado. 

“García Márquez. História de Um Deicídio” é uma longa carta de amor a um autor, a um amigo, à literatura. 

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