“Glass Onion: A Knives Out Mystery”, de Rian Johnson: a desconstrução da fórmula
Este artigo pode conter spoilers.
Tão antiga quanto uma qualquer fórmula é a comédia que sobre ela se despenha. No cinema, nomeadamente, consoante algo era inventado, nunca foi longa a espera por alguma manifestação paródica.
Nos anos setenta, em particular, astros da comédia evoluíram dos pequenos palcos para os grandes ecrãs ao denunciar chavões permanentes. Mel Brooks com filmes como “Blazing Saddles” (1974), uma versão satírica do faroeste americano, ou Woody Allen e as suas cínicas comédias românticas.
Por sua vez, a década de 2010 veio oferecer ao audiovisual uma técnica que, mesmo não totalmente divergente, tem conquistado cada vez mais popularidade: a subversão de género.
Esta terá começado em 2016, com a estreia de “Deadpool”, uma adaptação da personagem homónima da banda desenhada. Depois de a ter encarnado no tão mal recebido “X-Men Origins: Wolverine” (2009), o ator Ryan Reynolds, em conluio com o realizador Tim Miller, fez uma proposta muito clara. Ao invés de levar a sério o conto moral do homem que, de um dia para o outro, recebe habilidades sobre-humanas e, por isso, concilia a tentação de as usar para proveito pessoal com a responsabilidade de proteger quem não usufrui de idênticos poderes, a narrativa tomou um desvio e reencontrou-se com o conceito do anti-herói.
Acima do protagonista tagarela e indiferente ao bem-geral — Hollywood já o havia feito antes —, sobressaiu a natureza devassa e impiedosamente provocadora dum filme consciente de si mesmo, cujas personagens sabem perfeitamente que o são e do que está o público à espera, jamais hesitando em dirigir uma avalanche interminável de deboche a tudo e todos. A começar pelos lugares-comuns das histórias de super-heróis.
Como se sabe, “Deadpool” saiu vencedor — a receita ultrapassou os setecentos milhões de dólares —, levando Hollywood a fazer da “desconstrução da fórmula” uma recorrente fórmula. Na maioria das vezes, cómica e refrescante.
Anos depois, levou-se a laboratório um género que, há muito tempo, havia perdido o fôlego: o whodunnit, a história de mistério envolto num homicídio — “who has done it?”, “quem foi?” —, decorrente num espaço único e ocupado por distintas personagens. Inspiração de diversas gerações de escritores e cineastas, os romances de Agatha Christie foram, assumidamente, a maior fonte de influência de Rian Johnson, quando escreveu e realizou “Knives Out” (2019), que se tornou depressa num crowd pleaser, graças a momentos aguçados de comédia e um tom autorreferencial muito perspicaz.
Para começar, o assassinado, interpretado por Christopher Plummer, é um renomado romancista de mistério, dono duma bela mansão — “Este gajo vive praticamente num tabuleiro do Clue”, comenta um polícia a certo ponto. As personagens conhecem e, por vezes, referem os contornos e desfechos de tais enredos, sendo a presença mais notável a de Benoit Blanc, o eclético detetive interpretado por Daniel Craig.
Rian Johnson cometeu, ainda, a corajosa jogada de estremecer o esqueleto que o público expectava — pelo fim do primeiro ato, por exemplo, passamos a saber exatamente como ocorreu a morte em causa. Esta e outras contribuem para uma dosagem controlada de expectativas, reforçando eventuais reviravoltas e sequências de tensão.
A receção comercial e crítica de “Knives Out” originou um contrato milionário entre o realizador americano e a Netflix, que encomendou, de imediato, duas sequelas. Seguindo o mistério rodado em Boston no inverno de 2018, chega agora “Glass Onion: A Knives Out Mystery”, que ostenta o azul do Mar Egeu e uma extravagante estadia numa ilha grega, em pleno começo da pandemia de Covid-19. Num fim-de-semana caloroso, conhecemos um enigmático grupo de desconhecidos, onde se incluem um cientista brilhante, uma candidata política por decifrar, influencers desprovidos de grande inteligência e, claro, um Benoit Blanc alegre e deslocado. Após alguma contextualização, alguém morre. Ou melhor: alguém é morto.
Deve-se reconhecer, para começar, que Rian Johnson tinha a tarefa ingrata, como muitos têm, de corresponder à qualidade do primeiro filme. Seria de esperar, portanto, que a Netflix fosse palco dum mistério mais complexo, que, tal como o irmão mais velho, merece ser visto, pelo menos, duas vezes.
Contudo, como também acontece com muitos, Johnson retrocedeu bastantes passos. Imagina-se que a imprudência e o excesso de confiança com que escreveu “Glass Onion” provêm dos rasgados elogios que recebeu por “Knives Out”. Além de um texto manchado por muita exposição desnecessária, que supõe um espetador incapaz de acompanhar o desenrolar dos acontecimentos, o progresso da história depende da tolerância do público em absolver e aceitar imensas cenas, informações e escolhas duvidosas das personagens. Fica a ideia de ter sido essa, em determinados momentos, a orientação da montagem de Bob Ducsay, que foge com o rabo à seringa na esperança de ofuscar uma lista gorda de facilitações e conveniências narrativas.
Em contrapartida, essa escolha sustenta a agilidade com que é superada a marca das duas horas de duração. Felizmente, “Glass Onion” é tudo menos aborrecido e consegue preservar as virtudes técnicas do projeto passado, como a lustrosa direção de arte de David Crank, a intrigante banda sonora de Nathan Johnson e os enquadramentos matemáticos do diretor de fotografia Steve Yedlin. O próprio Rian Johnson, compensando as fraquezas do guião, volta a subverter expectativas e a manter o suspense vivo, assistido pelo elenco de luxo.
Daniel Craig não esconde a adoração pelo excêntrico Benoit Blanc, uma personagem que lhe veio garantir um novo auge à carreira, após a sentida reforma de James Bond. Desta vez, os fãs podem conhecer um pouco da sua vida pessoal e uma psique abalada pelo confinamento, ao qual se mescla um lado desastrado e ligeiramente exibicionista. No fundo, um profissional com um intelecto fora do comum, que sabe que é a pessoa mais inteligente do ambiente em que se insere e o conduz a julgar o contrário.
Partindo do papel, as personagens secundárias podem não apresentar suficientes camadas, mas os atores mostram-se mais que empenhados e interessados no material. Fatias deste bolo de suspeitas e carisma, saltam à vista Janelle Monáe, com um semblante calculista e frio, e uma vaidosa Kate Hudson, celebrizada por polémicas e uma crença inabalável em “dizer as brutas verdades”.
Algo de que Rian Johnson não se desprende é incluir atores em minúsculas participações, os chamados cameos. Um deles é duma simplicidade hilariante, enquanto o outro não serve propósito algum senão desperdiçar talento. “Vou escolher este ator famoso para esta cena porque quero e posso”.
Ainda dentro da caracterização das personagens, o filme cumpre a tarefa de espelhar fielmente um país (os Estados Unidos da América) e um mundo que lhe acompanha tendências e deficiências. Depois de “Knives Out” ter denunciado uma sociedade nepotista, elitista e xenófoba, a sequela ridiculariza a cultura dos magnatas da tecnologia — vêm à cabeça Jeff Bezos ou Elon Musk —, que, em troca de uma transação choruda, levam ao bolso uma mão cheia de governantes, empresários, cientistas e celebridades.
Não é, tampouco, coincidente a opção de situar a história em Maio de 2020 — Rian Johnson assume que escreveu a sequela durante as sucessivas quarentenas. É sabido que a pandemia de Covid-19, período de incerteza científica e desinformação alarmante, veio inflamar pré-existentes turbilhões sociais e políticos, o que persuadiu o povo e a comunicação social a retornar a debates como a liberdade de expressão e a polarização das classes sociais. É compreensível a pressa dalguma parte do público, estafada e lesada, em virar a página, em optar por consumir cinema doutros teores. Mas tenha-se cautela. Ainda muita matéria merece ser maturada. Esse desígnio a sétima arte consegue concretizar.
O que “Glass Onion”, mesmo surpreendente e engraçado, não concretiza é a disciplina com que o seu antecessor fora executado. Antecipando uma terceira visita ao universo de Benoit Blanc, é necessário que Johnson recupere a sensatez. Que deixe de espernear, na tentativa de levitar. A desconstrução da fórmula foi longe demais.