Gonçalo Câmara, o poeta de copa larga que tirou da pandemia um livro de poesia

por Magda Cruz,    28 Maio, 2020
Gonçalo Câmara, o poeta de copa larga que tirou da pandemia um livro de poesia

O segundo convidado na série “A quarentena dos escritores”, que podes acompanhar no podcast “Ponto Final, Parágrafo”, é Gonçalo Câmara. O isolamento do poeta e radialista fez-se entre várias paisagens, com companhia canina, muita reflexão e livros. No episódio 30 do podcast, Gonçalo dá conta da importância da cultura, conjuga o verbo desconfinar e lê haikus (forma curta de poesia japonesa) do novo livro que chega no final deste ano.

Os escritores costumam isolar-se do caos do mundo para escrever. Mas quando o isolamento é imposto, como fica a relação com as palavras?

Gonçalo Câmara publicou o primeiro livro de poesia, “entre o deserto e a montanha”, no verão passado. Quando não está a escrever poemas ou crónicas, dá voz aos poemas nas rádios onde trabalhada, a Smooth FM e a M80. O livro que aí vem é totalmente dedicado à forma curta de poesia japonesa. “A Árvore Que Não Fazia Sombra” tem cerca de 130 páginas apenas com haikus, publicadas pela Emporium Editora.

O livro anterior de Gonçalo, “entre o deserto e a montanha”, de poesia em viagem, que também contém haikus, foi escrito numa esplanada em Belém, virada para o Tejo. O novo livro já não, conta: “Basicamente aproveitei a quarentena para dar corpo a isto. Não é obrigatoriamente poema escrito em tempo de COVID”, ri. “Alguns foram escritos em viagem, outros em casa, em Belém, no Alentejo, outros nos Açores há uns tempos.” A quarenta serviu muito para escrever, já que Gonçalo se revelava um pouco preguiçoso na montagem do livro. “Tinha os poemas todos compilados e aproveitei a quarentena para pôr isto em ordem. Basicamente foi o motor de arranque para o que será um livro lançado no final deste ano ainda.”

Disse estar preguiçoso, mas Gonçalo fez pelo menos uma coisa: disponibilizar o livro “entre o deserto e a montanha” em áudio, lido por ele mesmo, num estúdio que montou em casa. Ocupou-se com a escrita e fez do novo livro, em parte, um filho do isolamento: “Grande parte da poesia, grande parte do que é escrito pelos poetas, acho que parte do isolamento – seja em tempos de pandemia ou não. Acho que essa arte de escrever poesia parte muito de um pouco de solidão por parte de quem a cria.”

Neste caso de um isolamento forçado, Gonçalo não romantiza o ter de ficar em casa e tem muito presente que a pandemia trouxe muita coisa negativa. Mas olhando para a arte, acrescenta que acha que “é bom os artistas estarem em casa, as pessoas que criam – os compositores, os músicos, os escritores, os pintores, os escultores… É bom estarem em casa porque grande parte da sua arte sairá porta fora quando tudo isto passar.” E nesta perspetiva, conta que parte do isolamento serviu para materializar as ideias poéticas. Para isso, o trabalho na rádio, que também o apaixona, também permitiu dedicar um bom tempo à escrita. Na semana em que não trabalhava, era para o Alentejo que ia encher o caderno de poemas. 

A presença do cão de Gonçalo ajudou a passar o tempo e a voltar para a realidade, de alguma forma – sendo que a poesia é uma maneira de tirar uma fotografia aos nossos tempos. “Se estamos constantemente em processo criativo, damos cabo dos neurónios”, brinca o poeta, ao falar das interrupções que o Labrador castanho faz. 

Sem um grande abalo na rotina, o poeta e radialista lê, escreve, trabalha… Quando foi convidado do podcast Ponto Final, Parágrafo disse-nos que a vida dele eram as palavras e sugeriu um livro de Rosa Montero: “A Louca da Casa”. Gonçalo diz que com o Covid-19 veio a impossibilidade, de alguma forma, de “escapar” da rotina para estar com amigos e família e que isso o fez sentir algumas vezes louco em casa, mas não é assim tão linear. “É um misto de sentimentos. Não só para mim. Sou uma pessoa que sempre esteve bem em casa. Gosto de estar em casa. Não tenho problemas nenhum em isolar-me, eu próprio faço isso de forma inconsciente para escrever, seja simplesmente para estar em funcionamento no chamado modo aberto, de que também já falámos.” Estar em modo aberto é estar disponível para interpretar os estímulos que nos rodeiam, de ter ideias e dispersar numa tarefa – em contrapartida com o modo fechado. Estes foram conceitos que Gonçalo trouxe ao episódio 11, inspirados nos humoristas ingleses Monty Python. 

O livro está dividido em quatro partes: o tempo, o mar, a espuma dos dias e o campo. Gonçalo diz que os capítulos foram um acidente: “Quando estava no processo de junção de todos os poemas, reparei que a temática de cada haiku podia ser separada nestes moldes.” É seguro dizer que a ligação que Gonçalo tem com a natureza, por cada vez viajar mais pelo mundo (salvo esta pausa imposta pelo vírus), inspirou os poemas e a divisão temática surgiu. 

O poeta elabora: “Há poemas que estão mais relacionados com a contemplação do mar, com aquilo que é a nossa presença com o campo, há coisas que estão relacionadas com a espuma dos dias – lá está, com aquilo que é banal, trivial – e há coisas que estão relacionadas com o tempo.” 

Talvez mais cedo do que os leitores pensassem, o poeta tem então um novo livro. Os livros não têm data e validade, mas há sempre vontade de perguntar a um autor a célebre pergunta “Quando há livro novo?” Gonçalo esclarece: “Quando lancei o primeiro livro, tinha pensado em criar um novo livro dedicado também à poesia, no ano seguinte. Ou seja, lancei o primeiro em 2019 e gostava de lançar um livro em 2020. Obviamente que nada apontava para uma pandemia que nos apanhasse desprevenidos neste início de ano – que já vai quase a meio. Juntei o acaso, juntei os poemas, decidi falar com a editora para que se concretizasse esta ideia. Talvez se não houvesse quarentena, muito provavelmente aperceberia-me «epá, isto tem de ser lançado». E seria se calhar [a escrita] seria muito mais de atropelo, um pouco mais descuidado.” E conclui: “A pandemia também serviu para dar vida a isto – de forma mais tranquila e mais musculada.”

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No podcast, lê dois dos seus novos poemas, traz Adília Lopes e explica melhor o que é um haiku, citando Ricardo Araújo Pereira e borboletas.

“A Árvore Que Não Fazia Sombra” é o nome de batismo do novo livro. “Uma árvore que não faz sombra é uma árvore incapaz, que para nada serve. Se ela própria tiver consciência disso, é uma árvore frustrada. E isso são momentos pelos quais nós, humanos, também passamos na vida. Há momentos em que pensamos isso mesmo – “Se eu sou uma pessoa que não faz sombra, de facto para que é que sirvo?” E a pergunta “Para que é que eu sirvo” é uma pergunta que nos percorre os dias, desde que cá chegámos até que nos vamos embora. Somos pessoas que andam constantemente à procura, somos gente da dúvida, das questões. A vida é uma constante pergunta e a vida também pode ser ilustrada dessa forma.” 

Gonçalo Câmara diz no podcast que “Para que é que eu sirvo” é uma pergunta que faz muitas vezes, para perceber qual o papel que tem na rádio, na literatura, na família, nas relações pessoais e com amigos. “E a árvore que não faz sombra tem um papel que não é cumprido, ou que pelo menos é demasiado turvo. Essa questão muito humana acaba por ser o título do livro”, esclarece o autor. 

O poeta tem vindo a alargar a sua copa e a dar cada vez mais sombra aos leitores. E é ao ler que, acredita, constrói mais rapidamente opinião “e isso depois ajuda ao discurso. No episódio, revela dois livros que está a ler e que o inspiraram para escrever: “O velho expresso da Patagónia”, do americano Paul Theroux; e “The Narrow Road To The Deep North and Other Travel Sketches”, do japonês Matsuo Bashō. 

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Com o desconfinamento, o escritor está solidário com quem sofre seja por que razão for (como acredita estar sempre) acredita que “a pandemia trouxe muita perturbação, muita dúvida, muita ponderação”, mas mantém-se otimista.

O poeta vê a literatura e as artes como grandes companheiros em tempo de isolamento. “Acho que as pessoas vão olhar para a arte e para a cultura de forma diferente. De facto, foi uma companhia muito grande. As pessoas refugiaram-se nos livros, na arte criada online, voltaram a comportamentos de consumo cultural e estou esperançoso quanto a isso: que as pessoas olhem para a arte como algo absolutamente necessário na vida.” 

Terminou a fase de revisão e paginação do novo livro de Gonçalo Câmara. Com o selo Emporium Editora, “A Árvore Que Não Fazia Sombra” chega às livrarias do país, não se sabendo bem ao momento se será em setembro ou até novembro. A evolução da pandemia vai ditar a maneira de apresentar o livro: com público ou não. Até lá, mais poesia irá aparecer nas páginas das redes sociais e dos cadernos de capa castanha do poeta.

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