“Guerra”, de José Oliveira e Marta Ramos: a nobre despedida de José Lopes
Antes de chegar a Guerra importa lembrar Longe (2016), filme do realizador José Oliveira protagonizado por José Lopes. A curta-metragem acompanha o ator a deambular pela cidade de Lisboa, cruzando-se com amigos e em busca da filha que nunca conheceu. Ator de teatro e cinema, José passou os últimos tempos da sua existência sem meios dignos para se sustentar, acabando por falecer aos 61 anos, encontrado por um amigo na tenda onde vivia. Longe, apesar de se aproximar da vida real de José Lopes, foge do miserabilismo panfletário, constituindo-se como veículo para a poderosa presença em cena do ator.
Acabado de estrear no programa Sinais do Doclisboa 2020, Guerra segue Manuel (novamente José Lopes), ex-combatente da guerra colonial que sofre de stress pós-traumático. O filme vai intercalando momentos familiares e de partilha entre amigos ex-combatentes, com outros mais solitários e introspetivos, onde o protagonista vagueia por lugares que o transportam para memórias do passado, ainda tão presentes. Com o avançar do tempo do filme vão surgindo também encenações de sonhos e alucinações, evocando os fantasmas das experiências traumáticas que o personagem principal viveu.
Mais do que uma ficção sobre o veterano Manuel, Guerra é um documentário sobre José Lopes a interpretar Manuel. Apesar das diferenças evidentes para Longe, o novo filme de José Oliveira e Marta Ramos não deixa de ser, novamente, um pretexto para filmar o extraordinário ator português, como John Ford filmava John Wayne ou Pedro Costa filma Ventura. Em pano de fundo não temos Monument Valley ou o bairro das Fontaínhas prestes a desaparecer, mas temos uma Lisboa que vai resistindo aos avanços da gentrificação, onde os snack-bars ou as associações culturais ainda perduram.
Esta representação de José Lopes como herói, apesar de evidenciar o que uma vida ingrata fez ao seu corpo – perceptível na escassa dentição ou falta de cabelo – devolve-lhe a dignidade e nobreza que as vicissitudes da existência lhe foram progressivamente negando. José Lopes, não sendo ex-combatente, baseou a sua interpretação em relatos de amigos que o foram. No entanto, particularmente nas cenas de maior exigência emocional e catarse, é impossível não olhar para o homem por trás da performance, a personagem ficcional fundindo-se com o ator.
Estes momentos, oníricos e surreais, relembram Cavalo Dinheiro (2014), de Pedro Costa, na forma como garantem aos personagens/atores o exorcismo dos seus demónios mais profundos. A escolha dos realizadores de encenar tais cenas em locais abandonados e repletos de graffitis em Monsanto e Cacilhas, contribui para o efeito de indefinição temporal entre passado e presente. O Manuel atual enverga a farda e empunha a espingarda G3 dos tempos da guerra, num cenário de ruínas mas cujas pinturas remetem à modernidade.
“Mas, nestes tempos, far-se-á o elogio dos que, para escrever, se sentaram no chão nu, dos que se sentaram entre as pessoas humildes, dos que se sentaram entre os combatentes. Dos que contaram os infortúnios dos pequenos deste mundo, dos que contaram os grandes feitos destes combatentes, com arte, na nobre língua outrora reservada à glorificação dos reis.” Escreveu Bertolt Brecht. Que se elogie então José Oliveira e Marta Ramos, por terem garantido a José Lopes uma condigna despedida, dos ecrãs e da vida, na nobre linguagem cinematográfica.