“Heavy Light”: o presente contado a partir das memórias de U.S. Girls
Pode ser fácil esquecer que Heavy Light já é o sétimo álbum de U.S. Girls. Os últimos três álbuns, editados pela 4AD, foram aqueles que catapultaram este projecto de Meg Remy para a ribalta alternativa. In a Poem Unlimited, o segundo desse trio, evoluiu o som do projecto para algo mais bem formado, com um som de banda completa que tornou muito mais interessantes as suas explorações experimentais da música das décadas de 1950 e 1960 . Heavy Light continua esse avanço numa direcção acessível, mas foca a escrita de canções na esfera pessoal e não em histórias de terceiros.
Este é um álbum de revisitação; não apenas de sonoridades vintage, mas também de memórias e até da própria carreira de U.S. Girls — três canções anteriores do repertório da banda são retrabalhadas aqui. Pelo meio do doo wop, blues, disco e jangle pop, o revisitar de memórias surge através de três pequenas colagens de entrevistas feitas aos elementos que colaboraram na gravação do disco, ora dando conselhos ao seu ‘eu’ adolescente, recordando a cor do seu quarto de infância ou — no segmento mais tocante — contando a coisa mais dolorosa que alguém lhes disse. Quase obriga o próprio ouvinte a olhar para dentro e a adicionar a sua voz às que se sobrepõem nos seus ouvidos, de maneira eficaz.
A acidez das melodias de In a Poem Unlimited é aqui substituída por algo mais directo ao assunto, mas não tão cativante em primeiras audições. Eventualmente, o som cheio, cortesia dos coros e instrumentação variada (como o bonito e misterioso solo de vibrafone em “Born to Lose” ou o apaixonado solo de saxofone do single “Overtime”, cortesia de Jake Clemmons, da E Street Band de Bruce Springsteen) puxam o ouvinte para dentro deste universo amplo em que morte, capitalismo, ecologia e trauma andam de mãos dadas. Esta mistura de temáticas poderia tornar este um álbum pesado, mas a ginga de canções como “4 American Dollars” ou “And Yet It Moves / Y Se Mueve” — em que inglês e espanhol se cruzam numa estrutura de chamada e resposta que traz à mente girl groups dos anos 50 — conferem alguma leveza aos temas.
As poéticas letras de Meg Remy normalmente estão cravejadas de significado. Em tempos de tribulação viral e — ampliando um pouco mais a cronologia — sensibilização ambiental, a negra “The Quiver to the Bomb” toma uma profundidade ainda maior. Nessa canção, uma rapariga que surgiu há 4 mil milhões de anos convida-nos para a sua terra, ignorando que “we’d over-reap what she’d sown”, referindo-se à nossa sobre-exploração de recursos terrestres. Por isso “now she’s taking it back / she’s kicking us off her land”, aludindo às catástrofes naturais e outros sinais que a humanidade tem recebido em recentes anos.
Da escala planetária para a escala pessoal, “Denise, Don’t Wait” explora uma relação mãe-filha caída em desgosto, com letras acutilantes como “Mama, I’m never gonna ask again, believe me / Why can’t you see me from my side? / It’s apparent your pride / Means much more to you than I”, planando sobre uma temática incomum que é abordada a fundo na balada “IOU”: como ninguém escolhe nascer, mas depois tem de viver com essa decisão de terceiros. Estas duas canções desabrocham com audições repetidas, a sua sonoridade nocturna cativando estrofe a estrofe.
Ao longo de apenas 37 minutos, Heavy Light atravessa uma multitude de diferentes estados de espírito, épocas, géneros e temáticas, numa embalagem concisa e riquíssima que espelha a genialidade de Meg Remy. É um retrato contemporâneo pintado com materiais do passado — sejam eles os clássicos da música ou simplesmente as recordações dos artistas que o criaram.