“Heimat Is a Space in Time”, de Thomas Heise: em busca de uma identidade germânica
Contribuindo para o fio condutor que ligou as obras programadas neste Doclisboa‘19, surge mais um filme em que os arquivos históricos são indissociáveis da sua forma. Parte da obra de Thomas Heise foi exibida na secção de retropectiva “Ascensão e Queda do Muro de Berlim – O Cinema da Alemanha de Leste”, sendo que “Heimat Is a Space in Time”, o seu trabalho mais recente, incorporou a secção “Da Terra à Lua”. O seu cinema retrata a vivência em vários períodos da história da Alemanha, sendo perceptível que toda a sua carreira se encaminhou para este magnum opus de 3 horas e 40 minutos, um retrato de 100 anos vividos pela sua família em território germânico.
O filme é narrado pelo próprio realizador, que vai lendo, de forma imperturbada, a correspondência trocada entre os seus familiares e amigos, ao longo do século XX. Os assuntos e problemas pessoais relatados pelas cartas e diários vão-se interpondo com as incidências políticas alemãs e com os momentos chave da sua história. Atravessamos a 1ª Guerra Mundial, a emergência do Terceiro Reich, a 2.ª Guerra Mundial, a RDA, a ascensão e queda do muro de Berlim. Estas circunstâncias são inferidas pelo espetador, pelas datas das cartas e pelo conhecimento histórico, pois nem sempre são relatadas de forma explícita.
Existe uma acentuada e propositada dissonância entre o som (narração do conteúdo das cartas) e as imagens. Apesar de, amiúde, sermos confrontados com imagens dos próprios arquivos (cartas, fotografias), a projeção é dominada por paisagens atuais, num arrebatador preto e branco. Árvores despidas, locais abandonados e em ruínas, comboios e estações ferroviárias. A monotonia da narração contrasta com o permanente movimento das imagens, reforçado pelos constantes travellings da câmara, que vão varrendo os espaços da ação, e materializado nos caminhos de ferro e locomotivas.
As imagens que mentalmente criamos através das descrições de Thomas Heise são enriquecidas pelas imagens que vão surgindo na tela, fugindo da óbvia metáfora e contribuindo para a desorientação de um público em constante busca de um sentido que não tem que lá estar. É esta possibilidade de leituras que torna o filme tão fascinante, permitindo que a imaginação de cada um vá construindo as pontes entre o que ouve e o que vê. Estaremos a observar locais atuais onde, no passado, se sucederam os acontecimentos descritos na narração? Os espaços abandonados e degradados representam, de alguma forma, um território devastado pela sua história? Será a opção em filmar linhas férreas e comboios – facilitadores da proximidade – ao invés de muros, uma escolha formal e política?
O conteúdo dos documentos vai correspondendo ao desenvolvimento de personagens de uma narrativa convencional. A personalidade de cada familiar vai ficando expressa na forma como escreveram estes escritos, deixando permear para o texto o seu sentimento perante os acontecimentos. São testemunhos que, miraculosamente, sobreviveram à máquina opressiva do estado nas suas várias mutações, e reveladores de uma realidade que será sempre enigmática para quem não a vivenciou.
Tal como “saudade” é uma palavra sem tradução, “heimat” é exclusiva ao dicionário germânico. Significa casa, pátria, ou algo intermédio. Está associada à cultura e identidade alemãs. “Heimat Is a Space in Time” tenta fazer sentido desta expressão, procurando, nos testemunhos desta família, ao longo de 100 anos, um vínculo afetivo que ligue o povo alemão à sua terra.