Hoje é um dia muito especial
Hoje é um dia muito especial. Hoje é o dia em que como liberal celebro o dia da liberdade, o dia em que um povo subjugado por uma ditadura fascista, que o condenou, torturou e matou se revoltou contra a mesma. E venceu, não só fisicamente, pelo derrubo triunfante, mas nos corações dos portugueses.
Não faço ideia o que é viver em ditadura. Não sei o que é ser perseguida pelo meu ativismo político, nem sentir arrepios na espinha cada vez que tenho um comportamento que o homem louco no poder desaprova. Não sei o que é dividir uma sardinha por seis irmãos, nem viver esfomeada, esgotada de trabalho escravo em quintas de amigos do regime. Não sei qual é a sensação de ser enviada para uma guerra que não comprei, numa colónia sobre a qual não sinto qualquer sentimento de pertença, para assassinar outros seres humanos, porque temo a prisão se desertar.
Eu não sei nem sonho saber o que é, e o que foi. Mas vejo-o nos olhos do meu avô cada vez que chora a ouvir Zeca, e murmura “25 de abril sempre caralho, fascismo nunca mais”. Porque ele experienciou isto tudo. E se este fado me tivesse tocado, talvez encetasse exatamente a mesma bandeira, enquanto murmurava que fascismo nunca mais. Nunca mais mesmo.
É por isto que há muita coisa sobre este dia que me escapa à compreensão. A direita, o lado com quem normalmente me identifico, diz-me que este dia é da esquerda, que não querem nada com ele, e os que querem celebram-no sempre seguido de um “mas”. A esquerda diz-me que sou hipócrita por o querer celebrar, porque no meu lado do espectro há quem assumidamente não goste do dia, como se o ónus das opiniões dos outros residisse em mim.
Há até quem me diga que o lado com o qual me identifico está apetrechado daqueles vampiros que fazem o meu avô chorar quando ouve a Grândola, e eu questiono-me se vivo na mesma realidade que estas pessoas. Leio pessoas à direita a dizerem-me que eu não considerar o PCP uma ameaça à democracia, quando eu sinto que devo a muitos dos militantes vivos e mortos do partido o facto de poder escrever este texto em liberdade, faz-me não-de-direita. Vejo o anti-esquerdismo crescer na retórica e discurso de um partido com o qual me identificava, e sou informada que esse partido foi proibido de participar na marcha da liberdade pela associação que existe para manter vivo o espírito de Abril: liberdade e inclusão.
Dir-me-ão que quem minimiza consistentemente o dia, ao fingir que o objetivo de Abril foi instalar uma ditadura do proletariado, em vez da libertação de um país das amarras do fascismo, não merece marchar ao lado de quem marchou a mesma avenida há 47 anos. Ou que quem faz cartazes regularmente a ridicularizar ou a tentar pintar partidos o PCP e o BE como ameaças à democracia não pode depois exigir inclusão da parte dos mesmos. Certo. Mas isto não é Abril.
O 25 de Abril não pertence a ninguém. A celebração deste dia deve ser feita por todas as pessoas, de todos os quadrantes ideológicos, porque a razão pela qual existem quadrantes e não apenas propaganda fascista é o facto de as pessoas mais corajosas deste país decidirem que as gerações seguintes deviam viver em democracia. É essa democracia que permite que pessoas com visões completamente opostas debatam em Assembleia da República, pessoas essas eleitas, contrastando com a antiga forma de fazer política: detentores de monopólios tentarem influenciar o regime.
Nada do que eu escrevi anula eu me considerar uma liberal-social, que ainda há uns meses votou num homem de direita, por o considerar ser o melhor candidato. E é precisamente o facto de a direita se ter retirado da celebração deste dia, e de a esquerda estar absolutamente confortável em o fazer sozinha, que escrevo este texto. A partidarização do dia, a polarização da memória de quem o viveu, o descalçar da bota do lado que quer crescer o bolo, mas que não entende que sem a democracia dada por este dia nem todos conseguem beneficiar do mesmo, a exclusão forçada pelo lado que prega a inclusão de tudo e todos, mas que vive bem com o monopólio do dia, são uma prova óbvia de que este país tem muita dificuldade em analisar a sua história.
Também é importante referir que é no mínimo ilógico celebrar o 25 de Novembro neste dia. Sem o 25 de Abril não existiria 25 de Novembro, porque não haveria democracia a validar nesse dia. A Abril o que é de Abril, sem qualquer “mas”.
Gostava de pensar que esta polémica com o impedimento da IL marchar foi um sinal à direita para esta entender que está na altura de confrontar a nossa história democrática recente, entender o significado histórico do dia para a maioria dos portugueses, e ir para as ruas neste dia, todos os anos. Infelizmente, não acredito que tal ocorra.
Vivemos nos ímpetos das caixinhas, do arreganhar do dente a quem pensa diferente de nós, do demonizar partidos democráticos e pessoas que os constituem, e isto não é Abril. Do PCP ao CDS há milhares de visões e políticos que tentam servir o seu país, com soluções muito distintas, mas de uma forma democrática. É isso que eu escolho celebrar hoje. Liberdade e pluralidade.