‘Holy Motors’, toda a vida num dia
É difícil separar o cinema de Leos Carax da sua vida pessoal. Ao longo dos seus filmes encontramos sempre elementos comuns, praticamente copiados da sua experiência de vida, mas é em “Holy Motors” que sentimos a dor da sua perda e que o seu coração, através das imagens, exprime muito mais do que o realizador francês é capaz de dizer em entrevistas.
Leos Carax é uma figura invulgar do cinema, embora não seja um dos cineastas franceses mais aclamados do seu tempo, é uma figura de culto no cinema surrealista e sonhador dos últimos anos. Em alguns dos seus filmes podemos ver claras influências de Alejandro Jodorowsky ou Luis Buñuel, mas Carax tem sempre tentado criar a sua própria identidade, algo que consegue com este “Holy Motors“.
“Holy Motors” não é uma obra-prima, é mais uma viagem pessoal do realizador que se tenta ligar às experiências de vida de cada um de nós, os espectadores do seu cinema e de tudo o que nos passa em redor. Se por um lado temos a narrativa fantasiosa de Monsieur Oscar, por outro temos uma severa crítica social a tantos elementos que fazem parte do nosso dia a dia, como o capitalismo, relações amorosas, consumismo e o estigma de George Orwell, o controlo social.
“Holy Motors” retrata um dia na vida de Monsieur Oscar (ou será a vida num dia?), enquanto o mesmo vai desempenhando vários papéis bizarros como um qualquer actor numa peça de teatro. A diferença é que esta é a vida real e Oscar vai sendo confrontado com questões morais, sociais e pessoais, enquanto é pressionado pelo Homem com a Mancha de Vinho (Michel Piccoli) ou um outro qualquer capitalista, numa clara analogia entre o capitalismo e a sociedade em que vivemos. Dentro da limousine conduzida por Céline, Oscar vai alternando entre os vários personagens que tem que interpretar para completar as suas tarefas diárias. Esses personagens variam desde um homem de negócios a um bandido, um louco chamado Monsieur Merde (segunda aparição do personagem, após Tokyo!) e até mesmo um velho magnata. A limousine serve como metáfora e crítica social ao capitalismo: a vida real reduzida a um espaço limitado e conduzida por outra pessoa.
Podemos interpretar o filme de várias formas distintas, mas duas delas são sem dúvida algo objectivas. A primeira é a noção de crítica social e sonho. Enquanto o personagem de Oscar vai passando de tarefa em tarefa, personagem em personagem, a fantasia mistura-se com a realidade. Segundo se diz, uma pessoa normal tem vários sonhos por noite, tal como Oscar passa de realidade em realidade, interligando-as praticamente apenas através da limousine e do facto dele próprio ser sempre o protagonista, tal como nós nos nossos sonhos. Em relação à critica social esta é clara: Desde o momento em que Eva Mendes esta a ser fotografada no cemitério e o personagem de Monsieur Merde a rapta, à forma como o mesmo personagem lhe “constrói” um vestido, entre outros elementos claros. A segunda interpretação é também algo objectiva e relaciona-se com a vida pessoal de Leos Carax, o realizador.
Até 2011 Leos Carax foi casado com a modelo e actriz russa Yekaterina Golubeva, que se suspeita que tenha cometido suicídio em 2011 e a quem o filme é dedicado. A própria filha do casal tem uma pequena aparição no inicio do filme. Esta relação é explorada no filme através de Oscar e a personagem de Kylie Minogue, Jean, numa cena arrepiante. Também durante outro segmento há uma parte em que Oscar (a interpretar outro personagem) vai buscar a sua filha a uma festa e os dois têm uma longa conversa sobre mentira e confiança. Este momento é claramente pessoal e emocional até para o próprio actor Denis Lavant. A própria sequência inicial mostra o realizador francês a sair do seu quarto através de uma porta oculta na parede e a descobrir aí uma sala de cinema, no qual diversas pessoas assistem ao que parece ser um filme sobre barcos, já que os sons que ouvimos nos levam para esse ambiente. Dois pontos curiosos: a passagem entre som e imagem, com a sequência a mudar para uma janela onde uma miúda (a filha de Leos Carax) está sentada a olhar através dessa mesma janela. E a janela ter o aspecto de uma janela de um barco, mas quando o zoom out termina percebemos que é sim uma janela de uma casa e é aí que o filme verdadeiramente começa. Esta metáfora pode simbolizar que o cinema é a porta para o mundo, para todas as realidades, para todos os sonhos e que nos permite viajar para qualquer lado e de qualquer forma, desafiando todas as regras.
“Holy Motors” é um grito de dor, mágoa e tristeza de um realizador que tem sempre algo mais a dizer. As interpretações de Denis Lavant são incríveis, todas elas bastante exigentes, assim como o papel de Edith Scob (Céline), que embora pareça mais distante, é também de grande qualidade. Do ponto de vista técnico o filme é exemplar, com planos picados e contra picados de génio e outros gerais de grande composição. Também a fotografia, da autoria de Caroline Champetier e Yves Cape mostra aqui um belo trabalho.
Todos nós somos vários personagens ao longo da nossa vida, cometendo erros e criando situações improváveis. Todos nós poderíamos ter sido outro tipo de pessoa dependendo das escolhas que fizemos ou das situações que nos foram dadas. Todos nós sonhamos, todos nós vivemos numa sociedade que controla e automatiza as nossas decisões. E é sobre isto que “Holy Motors” fala, através do toque pessoal de Leos Carax e da sua própria experiência de vida.