“Hotel Silêncio”, de Audur Ava Olafsdóttir: a vontade de consertar o que não tem conserto

por David Calão,    10 Setembro, 2019
“Hotel Silêncio”, de Audur Ava Olafsdóttir: a vontade de consertar o que não tem conserto

«Well, a setback can be a setup
For a comeback if you don’t let up
But this kind of hurtin’ won’t heal
And the end of all wanting
Is all I’ve been wanting
And that’s just the way that I feel»

David Berman (Purple Mountains, “ That’s just the way that I feel”, 2019)

Sinto um grande fascínio pelo tema das crises de meia-idade na ficção. É algo que ainda não consegui interpretar completamente – o fascínio – mas presumo que tenha a ver com algo que Harold Bloom disse a Charlie Rose, numa entrevista, sobre o facto de na literatura estar sempre presente uma ideia de “vida não vivida”; a crise de meia idade é sempre uma reflexão acerca do que não se fez, de expectativas frustradas, de sonhos esvaziados. Além disso, fascina-me a imagem do falhado, do “cavaleiro da triste figura”, do humilhado. Talvez a ficção seja a tentativa última de nos salvarmos desse falhanço, fazendo dele sentido, humor ou estética. Nesse sentido, talvez o verdadeiro falhado seja o escritor falhado.

Peguei em Hotel Silêncio, de Audur Ava Olafsdóttir, ao ler a sinopse do site da Quetzal, que o edita em Portugal e que o apresenta como a história de um homem “no limiar dos quarenta e nove anos. É um homem divorciado, heterossexual, sem relevância social ou vida sexual» mergulhado numa crise profunda.

Talvez o melhor autor a escrever este tema – se esquecermos por um momento que existiu Cervantes e Dom Quixote – tenha sido Saul Bellow: em Herzog, em Seize the Day, em Humboldt’s Gift ou em More Die of Heartbreak. O canadiano radicado nos estados unidos coloca todo o sistema mental do neurótico na página (como Woody Allen fez no cinema, mais tarde) com personagens que estão sempre nesse ponto da vida em que já não se tem tudo pela frente e o que se tem para trás não é grande coisa. Mas se os dois anteriores exploram esse frenesi neurótico, essa barulhenta paranóia, a autora de Hotel Silêncio propõe-se antes a escrever o silêncio – em entrevista, a autora afirma isto mesmo: «O silêncio é parte do processo de cura».

Esta cura e este silêncio não podem, no entanto, passar sem análise. É arriscado limitar o âmbito da literatura a coisas que ela é ou não é, mas é de se duvidar fortemente de uma literatura que pretenda conter em si uma cura para algo. E até que ponto pode a literatura escrever o silêncio? Não é ela, inevitavelmente, som e fúria?

Mas deixemos estas reflexões para mais tarde e dediquemo-nos um pouco ao enredo de Hotel Silêncio. O nosso protagonista arrasta-se calmamente, apático. Após o término de um casamento falhado, em cujos últimos três anos não teve qualquer contacto sexual com a mulher, descobre não ser o verdadeiro pai da sua filha. Isto precipita-o numa jornada suicida.

Ebeneser tem um vizinho, o único amigo que lhe conhecemos, a quem pede uma espingarda emprestada. É o tipo de amigo que não pergunta muito pela sua vida e que empresta uma caçadeira sem fazer muitas perguntas. À parte disto, partilha consigo muito do seu tempo, bem como as suas teorias feministas, que de certa forma o posicionam como uma personagem provocadora que desafia as convenções do expectável. Além dele, as restantes relações humanas do protagonista são com a sua filha Gudrun e com a sua mãe, Gudrun.

É em visita à sua mãe, obcecada com conflitos bélicos, que o nosso protagonista tem a sua epifania. Ebeneser decide que, não tendo coragem para terminar a sua própria vida, irá colocar-se numa situação propícia a que tal aconteça. Viaja, portanto, para um país (nunca citado) em guerra, tornando-se um dos três únicos hóspedes do Hotel Silêncio, levando na sua mala uma caixa de ferramentas, com a qual pendurará uma corda com que se irá enforcar, caso o plano não surta os efeitos desejados “naturalmente”.

A volta acontece quando, ao chegar ao seu quarto de hotel, usa as suas ferramentas para arranjar uma porta. Quando o staff do hotel e os restantes hóspedes se apercebem disto, começam a requisitá-lo para todo o tipo de biscates até que a sua fama se estende a toda a cidade, levando-o a tornar-se um biscateiro comunitário, a consertar um país em guerra de mala de ferramentas na mão.

Não querendo desvendar demasiado o final – que talvez seja óbvio por esta altura – julgo que a exposição que fiz até aqui é suficiente para contextualizar. Hotel Silêncio é uma história de redenção pelo reencontro de um propósito colectivo. A imagética sobre cicatrização que vai estando presente ao longo da escrita é, de certa forma, a metonímia que pretende reforçar esta ideia de cura e renascimento.

Paralelamente, existe uma tentativa de abordar o tema da masculinidade contemporânea. O protagonista tem uma relação estranha com o seu corpo e com a sua sexualidade. Vive para fazer arranjos para as suas mulheres. Vive, além disso, para reler as suas entradas num diário de juventude onde descrevia as suas conquistas femininas. Da trajectória do protagonista resulta que, perdendo o seu poder sexual, o homem fica a braços com uma crise existêncial insolucionável. Ou melhor, solucionável, através de um projecto de regeneração solidário.

Este processo é descrito em pequenos capítulos, quase todos intitulados por citações (na sua maioria de Nietszche em Assim Falava Zaratrustra ou Para Além do Bem e do Mal). O texto segue uma estrutura muito formal, anunciando-se constantemente nestas epígrafes que enquadram os episódios da vida de Ebeneser numa tradição filosófica e literária. Talvez um dos problemas esteja aqui – estamos constantemente perante aquilo que a autora pretende que leiamos no texto, a teoria está sempre lá, explícita, deixando pouco por descobrir.

Problemática é ainda a forma como o texto parece nunca se libertar de uma premissa inicial que, sendo interessante, não faz um livro. É interessante a ideia de um homem do primeiro mundo procurar o suicídio na morte a que os homens do terceiro mundo não conseguem escapar. Existe um mundo de questões nesta viagem até ao país do Hotel Silêncio. Porém, aqui, onde poderíamos ser deixados de facto num silêncio que nos permitisse avaliar esse paradoxo e as questões que levanta acerca do projecto humano, somos invadidos por um simplismo e um wishful thinking new wave “vai ficar tudo bem quando encontrarmos o nosso propósito na vida, que é a ajuda ao próximo” ensurdecedores.

E aqui encontra-se o grande problema de Hotel Silêncio. Não há temas mais ou menos legítimos para converter em literatura, mas há temas em que ser-se superficial ou unidimensional é mais perigoso do que noutros. O suicídio é um destes temas.

Em Suicídios Exemplares, de Enrique Villa Matas, o autor narra várias trajectórias suicidas – umas concluídas e outras não – com graça e humor. Em O Som e a Fúria, de Faulkner, com Quentin, numa das mais notáveis narrativas acerca deste tema, o autor fá-lo com neurose, drama e tragédia. No incontornável Sabor da Cereja, Abbas Kiarostami também nos apresenta uma trajectória semelhante, aqui sim, usando o silêncio com argúcia. Todos estes casos de belíssimas – e muito diversas entre si – abordagens ao tema respeitam uma regra fundamental: não dar respostas.

Talvez não exista hubris maior e mais censurável do que a de quem procura dar uma solução ao suicida e este livro fá-lo ostensivamente. A ideia de uma redenção pelo serviço aos outros é ingénua, infantil e carrega um subtexto absolutamente pernicioso: o de que o sofrimento psicológico individual é resultado de um egoísmo e de uma falta de atenção ao outro (como se não fosse, muito provavelmente, precisamente a sua causa). Hotel Silêncio é, infelizmente, demasiado barulhento para este tópico. E como pode um livro pretender escrever o Silêncio quando as várias vozes do autor não nos deixam um milímetro para enchermos com a nossa própria reflexão?

À parte isto, de Hotel Silêncio pode dizer-se que “lê-se bem”, essa figura da crítica literária informal que significa que é fácil de ler e mantém o leitor entretido. A autora possui um bom domínio da prosa e consegue construir algumas imagens interessantes, ocasionalmente poéticas. Porém, é-me difícil avaliar um livro pelo que ele é sem olhar para aquilo que tenta ser. E, nos seus intentos, relativamente às ideias que invoca e às reflexões que convoca, fica muito aquém. Não há limites para o que a literatura pode ser, mas entre o som, a fúria e o silêncio, se alguma coisa a literatura não deve ser é ruído. Não estou certo de que este livro não o seja.

PUB

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Artigos Relacionados