‘I, Daniel Blake’, o realismo duro, cru, mas também delicado e humano
A segunda Palma de Ouro do britânico Ken Loach após The Wind That Shakes the Barley (2006) reveste-se de um contexto actual que vale por si só em termos narrativos. O realismo de Ken Loach tem na actualidade uma época de extrema pobreza e uma Administração Pública sem humanismo, que trata as pessoas como meros números, afastando-se cada vez mais das mesmas e revelando um total desapego pelas suas dificuldades. Um sistema que se foca em sanções e punições procurando ignorar cada vez mais em fazer o bem, em procurar soluções. O cunho quase “reacionário” e político de Ken Loach não podia ter uma melhor praia para se debruçar e dar asas à sua mensagem.
O filme inicia com o ecrã negro em que ouvimos aquele que nos será apresentado como Daniel Blake a ser interrogado por uma so called profissional de saúde. “Consegue andar 50 metros?” ou “consegue elevar os braços acima da cabeça?” ou ainda “consegue pressionar as teclas do telemóvel” são algumas das perguntas que esbatem em respostas obviamente incrédulas do doente cardíaco que não percebe a correlação entre as questões e a sua doença. A profissional de saúde faz-lhe saber que necessita de cumprir vários pontos (15, mais exatamente, como se de um jogo se tratasse) para que esteja apto a receber um subsídio de invalidez durante a sua recuperação. Daniel Blake (o actor e comediante Dave Johns numa interpretação cheia de alma), um carpinteiro de meia-idade, viúvo, que se vê obrigado a deixar de exercer a única coisa em que é bom na vida, vê-se assim perdido sobre a sua incapacidade em cumprir os “requisitos” para a invalidez lhe ser reconhecida e a necessidade de cumprir os necessários para que tenha subsídio de desemprego.
É nesta luta que se prende grande parte da mensagem de I, Daniel Blake. Tal como Josef K, figura principal da intemporal obra O Processo do escritor Franz Kafka, Daniel Blake perde-se frente a uma burocracia que desconhece, que se assemelha como imensa e labiríntica, exercida por funcionários que se apresentam quase como sem coração, autómatos sem alma que apenas exercem a sua profissão não olhando às dificuldades daqueles que precisam da sua ajuda. Daqui surge uma possível crítica ao filme, em relação ao exagero de toda a situação (mas quem nunca passou por semelhantes experiências em filas de espera de uma Loja do Cidadão que atire a primeira pedra). Além disso, o filme incide também na falta de “tacto” que esta burocracia “electrónica por defeito” – como referido no filme por parte de um funcionário público-, mesmo para pessoas que nunca aprenderam a mexer num computador – nem lhes era obrigado a tal – e que origina, obviamente, a arguta resposta por parte do espirituoso Daniel Blake: “sou lápis, por defeito”.
Mas o realismo social, sobejamente reconhecido ao realizador Ken Loach não se fica só pelo lado “sem alma” e sem rosto desta Administração. Com a mesma contrabalança então um necessário e bem conseguido lado humano de tremendo poder ao longo de todo o filme. Este lado manifesta-se na maior parte das vezes através de desconhecidos, pessoas aleatórias que se acaba de conhecer numa fila de espera, num banco alimentar, o vizinho do lado ou um estranho com quem nos cruzamos na rua e que revelam sempre a prontidão em serem solidários. Uma mensagem de esperança no meio de um drama pungente e que acaba por ter efectivação através da relação criada por Daniel Blake com Katie (mas também com o seu vizinho, apesar de menos relevante).
Katie – uma tremenda prestação de Hayley Squires – é uma mãe de dois filhos, desamparada e sem emprego, despejada pelo antigo senhorio e sem condições financeiras para dar uma vida condigna às suas duas crianças. Aí aparece Daniel na sua vida. Um bom samaritano que apesar das suas débeis condições (financeiras e de saúde) acaba por criar uma relação de sincera amizade com Katie e por ser quase como um avô para as crianças. Esta relação torna-se o verdadeiro motor de narrativa. A força e a alma de Hayley Squires conjugam na perfeição com Dave Johns em ecrã e os momentos partilhados, sobretudo aqueles com as jovens crianças, são de uma ternura e empatia irresistíveis. Dave Johns revela ser uma escolha perfeita para representar este Daniel Blake, de Newcastle, terra dos geordies, pessoas de trabalho e sem “papas na língua”.
Na decisão sobre a atribuição da Palma de Ouro, o júri de Cannes não ignorou a relevância do actual contexto social em que o filme se insere. Nem o poderia ter feito. I, Daniel Blake é uma obra comovente, de distinta humanidade, e é esse urgente factor humano, tão autêntico, que eleva este filme a um estado de graça totalmente merecido. Já no ano anterior em Cannes houve oportunidade de assistir ao filme La Loi du Marché, obra de Stéphane Brizé, também ela relevante dentro desta temática mas sem a pujança que lhe permitisse espalhar a sua mensagem, infelizmente. Em I, Daniel Blake não há subterfúgios narrativos, não há modernices nem maneirismos. Há sim um realismo duro, cru, mas também delicado e humano. É cinema de pessoas para pessoas, e assim se entende ainda melhor a entrega da Palme D’Or.