“I: Emergir do Caos” dos Macto é a definição de double trouble

por Miguel de Almeida Santos,    25 Julho, 2020
“I: Emergir do Caos” dos Macto é a definição de double trouble
Capa do disco

Em 1907, o médico norte-americano Duncan MacDougall sugeriu a hipótese científica de que a alma humana teria peso físico. Para provar a sua teoria, tentou aferir a mudança de massa de seis pessoas no momento da sua morte, verificando que, no caso de uma das suas “cobaias”, a diferença de peso era de menos 21,3 gramas. A experiência é considerada um falhanço e um claro exemplo de um viés para os resultados convenientes. Mas das suas cinzas pouco informadas surge “21 GR.”, a reflexão importante que os Macto fazem sobre o que somos. E, ao contrário da selectividade de MacDougall, aqui não há nada de fake

Macto são o imperial Youngstud nas barras e o autoritário Sensei D. nas batidas, uma união recente, mas que depressa se revelou frutuosa. Ainda que a parceria seja nova, o nome que escolheram não o é: provém do latim e significa investida, luta, assim como honrar e glorificar. E ficou claro desde o início que ambos estão empenhados em honrar o hip hop e lutar pelo seu lugar de destaque na paisagem musical actual. Depois de “Amuse Bouche” e da espampanante “Snatch”, em que é aparente o prodígio dos versos do rapper de Alverca e a polivalência da produção do beatmaker de Sesimbra, I: Emergir do Caos é o convite oficial para entrarmos neste mundo forjado no hip hop, mas de uma liga metálica muito sua. É um primeiro capítulo que augura um livro ambicioso, mostrando dois artistas e a sua parceria promissora. 

Macto / DR

O mote é dado por “SemiDeuses/Semiloucos” e pelo seu aviso profético cortesia de The Twilight Zone: “You walk into this room at your own risk”. Mas não há risco que não traga recompensa e o semideus dos nichos traz as suas barras mais aguçadas, incisivas e virtuosas para abrir a porta a pontapé e “embelezar o esgoto”. A batida simples de bateria seca complementada pelos scratches certeiros de DJ X-Acto revela os talentos multifacetados de Sensei D.: um loop cerrado de guitarra e glitches graves são acompanhados por samples que ocupam os espaços vazios e estéreis derivados dos variados flows nucleares de Youngstud. É uma introdução potente que demonstra as valências de ambos os intervenientes e a sua química natural. 

Se o tom do rapper soa a azedume, os temas que são discutidos comprovam-no: há um desprezo e niilismo generalizado nas suas palavras, e a pose de combate está sempre presente neste ringue sonoro. “Até Quando Eu sou Fake” é a epítome deste tratamento. A maneira trocista e subtilmente provocadora como o rapper canta o refrão é um dedo do meio metafórico para todos aqueles que duvidam da sua honestidade e vocação. Há barras guerreiras e com humor à mistura (“Tudo à espera da quantia, alegria é o meu ouro negro / À noite, vinho e birra e vir da saída com o olho negro”) e as percussões irrequietas deste tema são um mimo na batida, que é pautada por gritos guturais que a tornam ainda mais confrontante e contrastam com Youngstud e a sua entrega mais “descontraída” (se é que essa palavra tem lugar em alguma das barras deste projecto). 

DR

Mas nem tudo é luta e desavenças. “>Inserir Refrão Aqui<” leva-nos numa espiral de negrume, o momento mais profundo e dilacerante do álbum com direito a um doloroso solo de saxofone. O detective Rustin Cohle introduz-nos ao tema com o seu discurso pessimista e a própria cadência de Youngstud é tristonha, deixando ao critério do ouvinte a construção do refrão, um espaço em branco nesta supernova depressiva. O rapper consegue ser simultaneamente erudito (“É só deboche e auto-broche / Pintados no tríptico do Bosch”) e popular (“A tentar levar o anel ao forno / Mas sei que Sauron me vai ver”), revelando algumas das suas tristezas e a descrença num género musical que ama e vê definhar (“Porque a dentição do povo é podre / A verdade quem é que vai roer?”).

O amor é algo pelo qual Youngstud anseia, pela sua edelweiss, por quem clama em múltiplas vozes processadas no interlúdio do mesmo nome, um momento curioso no álbum, mais psicadélico e experimental e que revela a versatilidade do duo e a capacidade que têm em desdobrar-se em vários géneros. Mas ainda que essa seja uma das suas valências, há momentos em que Macto não demonstram a mesma clarividência: o banger “Burnout” é demasiado rápido e fugaz — faltava outra estrofe “maníaca” e de flows tresloucados de Youngstud — e “Spitfire”, uma ode transfigurada ao horrorcore, tenta ser muita coisa mas sem sucesso, acabando por soar dispersa e indefinida.

Em “21 GR.”, Youngstud diz-nos: “Eu peso mais do que este veículo / Duas pernas e dois braços”. E de facto, os quatro braços e as quatro pernas que nos trazem este álbum transcendem a sua forma física e deixam que a sua arte fale fielmente por eles. A alma dos Macto está presente em I: Emergir do Caos, coberta por um corpo muscular, tenso e distinto, um David sonoro. E fica claro que esta alma é bem mais pesada que 21 gramas. 

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Artigos Relacionados

por ,    30 Maio, 2023

Estreou, nesta passada sexta-feira (26), Rabo de Peixe, a segunda série portuguesa criada pela Netflix. A série, idealizada e realizada por Augusto Fraga, […]

Ler Mais