Idles no Coliseu dos Recreios: declaração anti-guerra

por Davide Pinheiro,    12 Março, 2022
Idles no Coliseu dos Recreios: declaração anti-guerra
Fotografia de João Pedro Padinha / Everything Is New
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Guns & Roses? Love & Rockets? Os Idles são todo um contraditório. O brutalismo apela ao amor. A agressividade incita à paz. O ruído estimula o pensamento. Love Against The Machine? Desta soma de forças contrárias sai a banda rock mais importante dos últimos anos. Os Rage Against The Machine do tempo em que o rock perdeu a bandeira da juventude para o rap. Mas quando se julgavam assinados os papéis para o divórcio definitivo entre as guitarras e o protesto, ei-los reerguer o rock de combate das cinzas. Não é um feito de somenos a restituição desta crença. 

Dois anos depois de termos recolhido aos nossos aposentos, toda a gente está sequiosa. Nesses 24 meses de pânico, avanços e recuos no recomeço da vida, os Idles fecharam um ciclo com o fulgurante Ultra Mono, e rejeitaram a “caricatura” (palavras do vocalista Joe Talbot) de banda rock operária emissora da geração das causas no arriscado Crawler. Embora a ignição seja uma espessa muralha sonora, assente numa poderosíssima secção rítmica e em relâmpagos de guitarras, com heranças não apenas na matemática do pós-punk, mas inevitalmente na fúria do hardcore, a narração agit-prop de Joe Talbot é a cola de uma narrativa urgente. Quando ouvimos “My blood brother is an immigrant/a beautiful immigrant” em Danny Nedelko (ele existe, é amigo dos Idles e vocalista dos Heavy Lungs), a mais oi! Punk de toda noite, promovida a hino, só um coração de pedra pode não se relacionar com o vírus da indiferença com o outro, e todas as consequências trágicas para a humanidade.

Fotografia de João Pedro Padinha / Everything Is New

Isto é guerra, anti-guerra. Contra as bombas, amar amar. Enquanto percorre em círculos constantes, Talbot é um pugilista do amor. “Não falamos a mesma língua, mas todos falamos a língua do amor”, diz. E repete, com resposta unânime. Quem diria há uns anos que uma banda rock seria capaz de usar a virilidade assim, com tanto afecto? Assinale-se a aclamação colectiva desde o primeiro instante. Antes de ser, já era um concerto incendiário. Reconhecimento e popularidade nem sempre são sinónimos, sobretudo numa época em que se cava um fosso maior entre melómanos e ouvintes aleatórios influenciados pela cultura de Internet (playlists, relacionados, Tik-Toks, etc.), mas no caso dos Idles há consciência do poderio e influência. Sem inventar a roda, abriram um precedente. Falar dos problemas da comunidade voltou a ser norma entre bandas rock, mas essa racionalização vivida não vem nos livros.  

É inútil discutir-se a sua legitimidade sem compreender uma fúria sonora que traduz inquietações e desejos individuais de mudança, extensíveis a milhões de cidadãos tratados como peões de um xadrez político jogado em tabuleiros de risco para a sobrevivência dos justos. Este caldeirão traduziu-se numa noite extasiante em que o círculo se completou: uma banda em ponto de ebulição, um Coliseu sedento e uma Europa em crise existencial.

Fotografia de João Pedro Padinha / Everything Is New

A comunhão entre banda e público já era conhecida de concertos anteriores. O que há agora são canções elevadas à condição de manifesto, uma mancha cada vez maior de gente conhecedora das letras de cor, moche em Divide and Conquer, gargantas roucas em Mother e um número de circo em “Love Song” porque, a juntar a todas as qualidades, o incendiário Talbot e os Idles sabem usar o humor com inteligência. Enquanto os guitarristas Mark Bowen e Lee Kiernan descem ao público, a canção evolui para um medley de I’ve Had The Time Of Life (!), o clássico de Dirty Dancing, Linger (!!) dos Cranberries e All I Want For Christmas Is You (!!!) de Mariah Carey (no passado, From Her To Eternity de Nick Cave & The Bad Seeds, era uma das repescagens).

Fotografia de João Pedro Padinha / Everything Is New

Inteligentemente, Talbot prefere lembrar que “estes amigos salvaram-me a vida”, referindo-se ao resto do grupo, do que apontar armas para a guerra. É um concerto, não um comício. É uma banda, não um partido, e os Idles têm cuidadosamente rejeitado esse papel panfletário, preferindo advogar a doutrina da empatia. Porque, de facto, só o amor nos pode salvar.

E este foi um concerto para vencer a inércia, perder o medo e abraçar-nos com um beijo no fim.  

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