‘Ilha das Flores’ é como uma anedota de George Carlin
Num dos seus especiais de stand-up comedy, George Carlin, conhecido pelo seu humor corrosivo e negro, dedica uma boa parte do espetáculo a criticar a atitude dos políticos norte americanos quando usam a expressão «Deus abençoe a América» nos seus discursos, normalmente após declararem guerra a um outro país qualquer. Um slogan que tem servido como desculpa para todos os conflitos entre povos, ou, segundo Carlin, uma forma de mostrar que «o meu Deus tem um pau maior que o teu».
Logo nos primeiros segundos de Ilha das Flores, antes de qualquer imagem surgir em tela, antes mesmo de qualquer narração em voz-off, Furtado atira em letras bem grandes para os nossos olhos a frase «DEUS NÃO EXISTE». Está lançado o teor perturbador com o qual continuaremos a ser bombardeados durante os próximos 13 minutos.
Este filme apresenta-nos, primeiro, um conceito muito simples, «trocado por miúdos», de uma maneira quase risivelmente simples. Esta ideia é o princípio do sistema capitalista: troca de dinheiro por coisas. O dinheiro – capital – é o cerne do sistema. A verdadeira questão deste documentário é: o que acontece com quem não possui capital? As relações do sistema ocorrem de maneira justa? Todos têm a mesma possibilidade de acesso ao capital? Este documentário, camuflado de simplicidade, acaba por nos fazer refletir sobre a profundidade destas questões de maneiras tão engenhosas e poderosas como poucas longas conseguem.
Ilha das Flores começa como o que parece ser um documentário ironicamente gracioso e leve sobre as conexões entre diversos materiais e seres, e como eles chegam à existência, mas rapidamente se deteriora para uma mostra de uma realidade crua e dolorosa das aberrações económicas e políticas dos tempos modernos (que em 2018 parecem ainda mais acentuadas do que no ano de estreia do filme). É uma curta relevante, que infelizmente ainda choca quando pensamos no que acontece com todo o desperdício da sociedade, numa era em que as pessoas são menos importantes do que o capital que produzem ou os ativos que representam.
Este é um filme executado com uma mestria invejável, onde a leviandade dos primeiros minutos da curta nos deixam completamente sem defesas para a aterrorizante realidade que dentro de momentos os seguirá. O trabalho visual é fantástico, onde os sucessivos apontamentos aparentemente desnecessários sobre as raças ou crenças religiosas dos intervenientes nos vêm relembrar que, se Deus não existe, os únicos culpados por estas aberrações sociais somos nós mesmos, como espécie, e que a desculpa disfarçada de «Deus abençoe a América», ou qualquer outro lugar do mundo, não se pode aplicar à Ilha das Flores – um sítio com muito poucas flores.
Os habitantes da Ilha das Flores estão na situação deplorável na qual são mostrados por culpa direta da troca de dinheiro por produtos e bens, da venda de tomates no mercado e das cercas para os porcos comerem. Essas pessoas não terão um final feliz, nem um lugar no paraíso como forma de recompensa pelo inferno que viveram na terra. A esperança aqui é como Deus – não existe.
George Carlin diria que Ilha das Flores é a melhor estrutura anedótica que se prova efetiva geração após geração: o set up (aqueles primeiros momentos leves e curiosos) ajuda a preparar o espectador – ou, no caso da anedota, o ouvinte – para uma punchline que, como na comédia do mestre Carlin, não vai cair bem a muita gente.
https://m.youtube.com/watch?v=e7sD6mdXUyg&t=4s