Imaginar uma Serra da Malcata selvagem
“Salvemos o Lince” foi uma das primeiras campanhas para a conservação da natureza em Portugal, um marco no movimento ambientalista do país. Contudo, e apesar da aparente vitória com a criação da reserva da Malcata, a área protegida não foi um sucesso e a serra acabou por ser esquecida. Turbinas eólicas foram instaladas, duas barragens foram construídas com um transvase entre ambas e as plantações de espécies exóticas mantiveram-se. A paisagem outrora selvagem que albergava o lince deu lugar a uma paisagem alterada, destruída e simplificada e como consequência o belo lince-ibérico acabou por desaparecer.
O recente regresso do abutre-preto à reserva, devido ao aumento das populações espanholas, é o maior sucesso desta reserva natural, o que aconteceu sem que nenhuma ação tenha sido feita para o promover. Mas as turbinas eólicas são uma ameaça constante para esta majestosa ave com quase 3 metros de envergadura. No lugar da Nascente do Côa, na serra das Mesas, já perto da fronteira com Espanha, existe gado doméstico no lugar da vida selvagem, arbustos de giestas no lugar de carvalhos e castanheiros, rochas no lugar de uma floresta viva. Vedações de arame farpado cortam o habitat e o brilho nos olhos cintilantes dos animais selvagens, que se desenhava na noite, desapareceu.
Como será a Malcata daqui a 15 anos? Um conto da exploração e destruição da natureza ou um conto da sua preservação e restauro? Uma triste história de negligência e abandono ou uma história de esperança e superação?
Imaginemos a Primavera na Malcata, no ano de 2037. O parque, perdido entre o Tejo e o Douro e entre a Serra da Estrela e a Serra de Gata, já não é conhecido como um dos últimos redutos do lince ibérico em Portugal, mas como um dos locais mais selvagens da Península.
Muito mudou desde 2022: as plantações de eucaliptos, pinheiros e pseudotsugas desapareceram, os parques eólicos foram mudados e os trabalhos com maquinaria pesada, outrora comuns, são hoje inexistentes.
A Malcata foi o primeiro parque em Portugal a adotar a estratégia de conservação da natureza de renaturalização. As condições eram as ideais, já que uma grande parte do parque eram terrenos públicos ou baldios, não existiam povoações no interior da reserva e o abandono da atividade agrícola tinha décadas de história.
Na parte norte, bosques de carvalho negral e de castanheiros dominam a paisagem. As sombras e atmosfera fresca dos carvalhais criaram as condições para o aparecimento de árvores de fruto como o mostajeiro, a cerejeira e a macieira brava. Nos vales encaixados, espécies raras como as tramazeiras, o azevinho e os teixos voltaram e, na zona sul, florestas de medronheiros e urzes unem-se a montados de azinheiras e sobreiros. A montanha é o limite entre o montado mediterrâneo de planície e a floresta mediterrânea de altitude.
As populações de veado, corço e javali são hoje mais abundantes e tem a companhia de outros herbívoros como a cabra-montês, os cavalos e as vacas monteses (espécies primitivas do gado doméstico). O regresso destas espécies ajudou a prevenir os incêndios florestais e criou um mosaico de habitats perfeito para o coelho e a perdiz, espécies-base do ecossistema mediterrâneo.
Esta abundância de pequenas presas ajudou o famoso lince-ibérico a regressar à Malcata, assim como as águias-de-Bonelli, águias-reais e até águias-imperiais-ibéricas, que hoje contam com vários núcleos populacionais destas três espécies. Quanto ao lobo-ibérico, esporádico na reserva em 2022, hoje conta com várias alcateias e os uivos ecoam pelo parque à noite. Os necrófagos também reconquistaram antigos territórios. A população de abutres-pretos cresceu para várias dezenas de casais e até quebra-ossos já foram observados.
No sopé da serra, as pequenas e monótonas florestas ripícolas do passado deram lugar a grandes e dinâmicos habitats de zonas pantanosas com uma grande variedade de aves, peixes e anfíbios. Esta transformação é resultado do castor, que voltou à região depois de uma ausência de várias centenas de anos. Nas antigas rotas do contrabando entre Portugal e Espanha onde passava tabaco, café e volfrâmio, hoje são veados, lobos e abutres que cruzam a fronteira, indiferentes às linhas desenhadas pelo homem. Ecossistemas funcionais e completos armazenam grandes quantidades de carbono e mitigam o efeito das alterações climáticas.
O restauro da natureza foi desenvolvido em harmonia com as comunidades locais. O turismo de natureza ajudou a manter os jovens e a atrair novas pessoas para a região. Com caminhadas, abrigos para a observação da natureza e passeios todo o terreno guiados. A agricultura, através de métodos regenerativos, também contribuiu para a biodiversidade. A conservação da natureza e o desenvolvimento económico são vistos como objetivos completares e não como opostos.
No céu azul, nas colinas verdes e nos vales dourados, em cada canto existe vida em movimento.
Que futuro para a Serra da Malcata? Uma exploração florestal? Uma reserva de caça? Ou uma área protegida bela, diversa e com vida?
Crónica de Daniel Veríssimo.
O Daniel é técnico de empreendedorismo da Rewilding Portugal.