IndieLisboa 2018: a doçura de ‘Person to Person’
Quem segue a influente revista online norte-americana Pitchfork, que se dedica à música, terá com certeza ouvido falar deste Person to Person, vendido como a comédia indie para nerds de música. Dissidências com o compositor do filme terão levado Dustin Guy Defa, o realizador, a procurar e escolher uma série de canções que, tal como as diversas personagens, habitassem o filme – algo que acabam por fazer. Mas a música como uma entidade, aquilo que ela nos faz sentir, é o cerne do segmento mais importante deste filme.
O filme é composto por quatro histórias que se vão desenvolvendo como uma banda desenhada. Entramos e saímos casualmente de cenas, às personagens é dado espaço para falar e há um seguimento natural que transmite aquela sensação de estar a folhear um livro. Ao fugir das influências óbvias (Woody Allen, John Cassavetes), esta ideia foi-nos plantada pelo realizador na sessão de perguntas e respostas que se seguiu à exibição do filme, em que nos disse que a maior inspiração para o filme veio da tira de banda-desenhada (e subsequente série televisiva) Peanuts.
Num dos segmentos, Bene Coopersmith – num magnético papel homónimo – compra um raro disco de vinil a um vendedor, apenas para descobrir que foi enganado. É aqui que entra a tal música como uma entidade, pois a personagem sente que o facto de ter música no coração a protegeria contra pessoas que se aproveitassem desse seu ‘ponto fraco’. Assim, quando se vê enganado e desarmado, há uma mudança de atitude e uma revolta, que são explicadas após a cena de perseguição mais ridiculamente hilariante da história do cinema. É um discurso lindo, que vale a pena ser transcrito aqui:
“Me, I’ve got music in my heart. I’ve got love for it, I seek it out. I find records, I collect them, I sell them to people who have that same love inside. It’s a tender spot, it’s vulnerable. It’s a spot that you think nobody is gonna take advantage of. Then you go around and you let that love be known. You share it, you share it with people and you trust that they won’t violate you.”
É preciso ter sensibilidade para escrever algo assim. No meio de toda a hilaridade da cena que se passou meros segundos antes, este discurso prende e leva a personagem a transcender o plano do cinema: passa a ser uma pessoa, a falar para nós, pessoas, que assistimos ao filme.
Esta história de uma burla acaba por ser uma das premissas mais inócuas do filme, que tem outras histórias que envolvem um assassinato e pornografia de vingança. No entanto, em todo este suposto negrume, não se sente o perigo. Em vez do perigo, somos confrontados com as boas intenções da maioria das personagens e as suas vulnerabilidades, numa doçura enorme. Até a enorme cidade de Nova Iorque é um pano de fundo cálido que não mete medo, envolve as personagens, comportando-se ela própria como uma personagem apaziguadora. Person to Person não assusta nem ofende; apenas quer relacionar-se connosco. É preciso saber dar-lhe o que ele precisa para nós próprios o apreciarmos mais.
Para além do destaque de Bene Cooperfield, Tavi Gevinson é outro nome a manter debaixo de olho. A sua postura lembra uma Scarlett Johannson que tivesse entrado em American Beauty, e a forma frontal como lida com os dramas adolescentes é refrescante e franca. As coisas são exactamente como ela o diz, até que se vê confrontada com sensações que não conhece. Aí entram as nuances da sua performance, que, à semelhança de Bene, surgem nas mudanças de atitude, naquele confronto com o desconhecido em que personagens que parecem ter tudo bem delineado acabam por ter de seguir rumos imprevisíveis.
Sem grandes experimentações, a dupla Michael Cera e Abbi Jacobson faz aqui o que faz melhor: ser awkward. O filme já merece todos os louvores cómicos apenas pelas cenas que os dois partilham dentro do carro de Phil, a personagem de Cera. Claire só quer mesmo sobreviver ao primeiro dia do seu trabalho como repórter, em que é logo destacada para cobrir uma suspeita de homicídio com Phil. As coisas dão para o torto, e nem gritar “Suck on Greed” dos Cock Killers – banda de metal na qual Phil toca baixo – resolve o mal-estar de Claire, que é mais talhada para ser uma bibliotecária pacata. Mesmo não o tendo resolvido, pelo menos deu azo à cena mais hilariante e desconfortável de todo o filme. As suas interacções parecem fruto de improviso, mas impressionantemente, a verdade é que tudo estava escrito e o guião foi seguido à risca.
O filme não é perfeito – há cenas ou frases evitáveis – mas a doçura que evoca sobrepõe-se a isso, pois, no final, é a sensação que deixa. O mais impressionante disso é que realmente parece ser essa a sua intenção e, nesse aspecto, é sem dúvida bem sucedido. Não precisam de haver cinismos ou perigos forçados, há uma simplicidade genuína que faz deste um filme feel-good a rever.