Insónia – Uma doença do sono
O sono é um estado neurocomportamental recorrente e reversível, que ocupa uma enorme parte da nossa vida — representando para a maior parte da população adulta cerca de um terço do seu dia. O seu papel é essencial na restauração e conservação de energia, bem como nos processos de crescimento, aprendizagem, consolidação de memórias e criação de novas células cerebrais. Constituído pelas fases REM (rapid eye movement) e NREM (non-rapid eye movement), pode através destas ser dividido em ciclos — estes são períodos que rondam os 90 minutos e nos quais há alternância entre estes estados, repetindo-se perto de cinco vezes por noite. A fase REM é aquela mais comumente associada aos sonhos — ainda que não seja a única na qual se sonha — sendo igualmente caracterizada pela ausência de tónus muscular.
O sono tem várias perturbações conhecidas e a sua área de influência é tão grande que não existe uma especialidade médica vocacionada para o tratamento de todas. Assim, tanto a psiquiatria, quanto a neurologia e a pneumologia são essenciais, devendo muitas vezes articular entre si ao longo do processo diagnóstico. As perturbações são normalmente classificadas em: insónia; perturbações respiratórias relacionadas com o sono — sendo a apneia do sono a mais conhecida e que representa uma mais relevante perda de anos de vividos quando não devidamente tratada; hipersónias de origem central; perturbações do ritmo circadiano do sono; parassónias; perturbações do movimento relacionadas com o sono e uma categoria indiferenciada: outras perturbações do sono, para aquelas que não se enquadrem em nenhuma das classificações anteriores.
Na Psiquiatria, a perturbação que é tratada com maior frequência é a insónia e é sobre ela que quero que esta crónica incida. Esta deve ser diferenciada quer da privação de sono — na qual há uma causa identificada para a pessoa não dormir — quer do padrão de sono de “shortsleeper” — no qual os indivíduos, de forma não patológica, não necessitam de mais do que 5h de sono em cada 24h*. A insónia é caracterizada por dificuldades em manter o sono em qualquer das suas fases, podendo ser inicial, intermédia ou terminal, consoante está ligada ao acto de adormecer, à manutenção do sono, ou a despertares precoces. Estas dificuldades associam-se a uma insatisfação relativamente à qualidade ou quantidade do mesmo e ocorrem apesar de existirem condições adequadas para dormir. São também relevantes outros sintomas que ajudam a diagnosticar uma perturbação, como o cansaço ao longo do dia, aparecimento de dificuldades na atenção, concentração ou memória e também a presença de irritabilidade ou sonolência diurna. A insónia é classificada como sendo aguda ou crónica, dependendo para isso de uma evolução inferior ou superior a três meses.
É bastante consensual dizer que, virtualmente, toda a gente já sofreu insónias. Na maior parte dos casos, estes estados de insónia são transitórios e resolvem por si antes de evoluir para uma insónia crónica. Para minimizar esse risco, aquando a avaliação de uma insónia, devemos estar atentos a três factores: os predisponentes, os precipitantes e os perpetuadores — os primeiros estão relacionados com a propensão (maior ou menor) para um indivíduo vir a desenvolver insónia; os segundos, com circunstâncias que possam originar um episódio agudo de insónia; os terceiros, estão normalmente relacionados com tentativas erradas de correcção da insónia instaurada e fazem com que esta se possa prolongar, mesmo após o factor predisponente se encontrar anulado. Os números de prevalência desta perturbação estão caraterizados com uma margem demasiado ampla (4-22%), mas estima-se que os sintomas de insónia estejam presentes em 30-35% da população. A insónia é mais comum em mulheres, idades avançadas, pessoas divorciadas ou com nível socioeconómico mais baixo. Para além disso, serve como um bom alerta para a existência de outras perturbações — cerca de 50% dos doentes que sofrem de insónia têm outra doença psiquiátrica associada, mais frequentemente da linha do humor ou da ansiedade.
O tratamento da insónia deve inicialmente ser feito através de Terapia Cognitivo-Comportamental para a insónia — assente num conjunto de “aulas” acerca do sono — e apenas numa segunda linha com recurso a medicação. Nesta opção, pode-se utilizar agentes farmacológicos diferentes, sendo que num tratamento de curta duração estão indicadas as chamadas “Z-drugs” e num tratamento de longo prazo o mais comum é que se utilizem antidepressivos ou até mesmo antipsicóticos (dependendo da avaliação médica). Isto reforça a ideia de que na psiquiatria as classes farmacológicas não são estanques e de que o facto de um medicamento servir mais comumente para um determinado tipo de patologia, em nada impede que tenha aplicação noutras.
Quanto à prevenção da insónia, dentro daquilo que é visto como uma boa higiene do sono, podemos tentar alimentar-nos de forma equilibrada e, ao jantar, em pouca quantidade; reduzir o consumo de bebidas alcoólicas; limitar o consumo de substâncias excitatórias como a cafeína ao período da manhã; fazer exercício físico de forma regular (evitando fazê-lo antes de ir para a cama) e limitar o quarto a duas actividades: sexo e dormir. Para além disto, um período de relaxamento ou um banho de água quente antes de ir para a cama, bem como uma proibição de ecrãs dentro quarto são práticas que promovem um sono saudável. Mais do que tudo isto, que é por vezes difícil de cumprir, importa que se esteja consciente da importância do sono, do impacto que tem em todas as áreas da nossa vida e de que, como com qualquer outra perturbação psiquiátrica, requer tratamento profissional.
* Alguns autores referem 6h e o número de horas de sono deve ser adaptado à idade do indivíduo.