Interstellar de trazer por casa: uma ficção quase científica de Natal
O ano é 2050, os mais inaptos para trabalhar ou combater o apocalipse climático são enviados para o espaço em pequenas naves individuais. Carregam consigo duas missões importantes: primeira, desamparar a loja, e segunda, encontrar outro planeta habitável.
A caminho da Constelação Cisne, ali mais ou menos como quem vai para Kepler de Cima, sigo a bordo de um desses veículos que o povo chamou de “vai-mas-não-vem espacial” (que, entretanto, baptizei de “Pastelão 2000”), quando reparei estar à beira daquilo que o pessoal da NASA me alertou ser pouquíssimo provável de encontrar: um wormhole. (Diga-se de passagem, esperava mais do que um túnel envolto em purpurinas). Se bem entendi a “formação” que nos foi dada, este tipo de passagem abobadada é a forma mais rápida de chegar à outra ponta da Galáxia. Espreito pelo retrovisor e guino à direita, em segurança, dirigindo-me à entrada da estrutura que, hipoteticamente, “liga dois pontos díspares do espaço-tempo”. Quer isto dizer que, uma vez entrado, tanto posso sair nos subúrbios do Planeta Renhex em 2099, como aparecer em Vilar dos Prazeres, concelho de Ourém, nas vésperas da morte da Princesa Diana (verdadeiros conspiradores entenderão). Ainda não tinha entrado com a dianteira da nave naquele tubo manhoso, e já Pastelão 2000 abanava mais que o busto da popular cantora italiana Sabrina Salerno, na piscina, durante a gravação do teledisco “Boys (Summertime Love)”, que eu tinha a correr em loop no ecrã frontal do cockpit.
Acelero, apesar da forte turbulência, decidido a enfrentar o medo, enquanto penso “que se lixe, ao menos não estou a trabalhar”. O que se seguiu não é fácil de pôr em palavras, porém farei o meu melhor. Quando dou por mim, estou a flutuar numa espécie de vácuo, a minha cara reflete-se à minha frente, meio disforme; tenho a vista embaçada, porém pareceu-me ver ao longe uma bola de futebol chutada por mim na escola primária, quando tentei marcar um penalty em força. O ambiente é ensurdecedor: um coro de gritos acompanha aquilo que agora sinto como uma queda num vazio infinito, uma mistura de reminiscências do parto com memórias de uma black friday em Alfragide. Tive vontade de soltar um gás, com os nervos, mas não me atrevi a fazê-lo ali: temi pelo fim do universo. De súbito, estabilizo. Fico como que pendurado num espaço dentro do Espaço, preso dentro do que presumo ser um cubo transparente.
Há movimento num dos lados: vejo uma sala onde um miúdo gordinho de cabelo comprido, com uma camisola da banda Nirvana, fala com uma senhora mais velha, que veste uma bata por cima de um roupão azul claro. Aproximo-me: é uma cozinha. Eu conheço este lugar.
— Ouvi um barulho: PUM! Uma coisa do outro mundo, tu não imaginas. Foi logo pela manhã, andava aqui por casa a descascar favas para o almoço, que o teu avô gosta muito. Ó pá, até irritam estas facas que ele manda afiar sei lá onde, não cortam nada de nada. Já tinha começado a manhã a ralhar com ele, para levar o casaco. Julgas que levou? Eu a dizer-lhe “Manel, olha que te constipas”, e ele nadinha, embirrou que não estava frio, que eu era chata e mais não sei o quê, e só para meter pirraça foi só com um pulôverzeco. Há de constipar-se e vier aqui pedir-me uma canja de bacalhau que vai logo de vela. Até bateu com a porta.
— Sim, mas que barulho foi esse que ouviste? — interrompeu o miúdo.
— Espera. Assim que o teu avô saiu, fui fazer um café para mim, com umas torradas, tomei aquela catrefada de medicamentos e… olha, sabes quem ligou? O primo da Colômbia! Diz que já está a viver em Madrid. Aquele rapaz tem sido cá de uma coragem.
— “Ouvi um barulho…” — o neto, impaciente, imitava a avó.
— Era o que te estava a contar. Eu ao telefone, vieram aqui bater à porta. Era a mulher do “Cobra”, como lhe chama o avô. Vá lá, vieram oferecer umas velhoses, agora para o Natal.
— Não fazem mais que a sua obrigação, tens-lhes dado tanta coisa.
— Deixa lá, filho. Nunca te arrependas de fazer o bem, já dizia a minha mãe. Não estão tão boas como as minhas, ela põe pouca abóbora, o marido não a deixa gastar. Olha, não sei se foi de estarem quentes ou o que foi, deu-me a volta à barriga de uma maneira… Tive que correr para a casa de banho.
— Como é que a tua mãe costumava dizer, também?
— “A vida está em três cagares: cagar muito, cagar pouco e não cagar nada”.
— Isso! E quando chegamos à parte do barulho? Olha, a panela está a ferver!
A mulher corre para o fogão e queima-se na tampa do tacho enorme onde faz uma sopa.
— C’ralho! — falou de forma rápida, quase num sussurro envergonhado — Isto quanto mais depressa, mais devagar.
— Pois, levantar mais cedo da caminha é que não é opção — disse o miúdo.
— Também tu? Olhem-me este cabrão… Vê lá se alguma vez te faltou que comer em casa da avozinha. Hás de lembrar-te muito da velha…
A sua mão sapuda mergulha num pequeno pote de cerâmica com sal grosso, que espalha por cima do líquido castanho a borbulhar. Prova-o com uma colher de pau e lambe os lábios. Atira mais duas ou três pedrinhas enquanto mexe o tacho. A bancada de mármore castanho, por baixo do fogão, é um despojo de panelas, alguidares, talos de couve, facas e colheres.
— Podes é pôr a mesa, que a tua mãe está não tarda aí. Ainda tens aulas?
— Mas rebentou alguma coisa ou não?
— Ah, sim. Onde é que eu ia?
Pega numa taça e começa a arrancar folhas de alface para a salada. Da marquise contígua à cozinha chega o assobio de um rouxinol-do-japão, que salta numa gaiola branca.
— …Venho da casa de banho e vejo que está a chover: lembrei-me da roupa… corro para a apanhar, cai-me o cesto. Isto era tudo molas espalhadas, por todo o lado. Lá as apanhei, a muito custo, e ainda tinha que salgar as carnes para o cozido de amanhã, que vem cá a tua tia e o menino gosta muito. Filho, senta-te, não gosto nada de falar com as pessoas em pé. Petisca qualquer coisa. Tens aí queijos e chouriço. Ainda tens escola hoje?
Num movimento brusco, o rapaz agarra a avó, como se estivesse a aprisioná-la num abraço.
— Ó pá, conta lá o que fez o tal barulho!
Ela sorri.
Afasto-me no cubo, o vidro do capacete embaciado. Reconheço a cena, no entanto não lembro o que provocou tão inesperado som. Desconfio agora que poderá ter tido origem num choque entre dois objetos compactos, e que, segundo a teoria de Einstein, terá criado ondas gravitacionais que perturbaram o tecido do espaço-tempo, propagando-se transversalmente e à velocidade da luz. Poderá uma dessas ondas ter chegado horas antes do acontecimento que a originou, e provocado o ruído? É possível que uma outra vaga tenha sido o que, anos depois, aqui me trouxe? A mim e, sobretudo, à saudade.
Talvez nem toda a verdade universal careça de uma base de ciência. Contudo, até à mais irreal ficção científica se exige um mínimo de verdade. Hoje já não tenho aulas, avó.
LC 24.12.2022