‘Introduzione all’oscuro’ é uma sublime homenagem a Hans Hurch
Hans Hurch tornou-se célebre, depois de uma carreira enquanto crítico, assim como pelo seu trabalho como assistente de realização da dupla Straub-Huillet, por ter sido, durante 20 anos, o diretor da Viennale. Aquando da sua morte no ano passado, surgiram, um pouco por toda a parte, elogios fúnebres ao programador, incluindo um pequeno texto do diretor da Cinemateca Portuguesa, José Manuel Costa. Um ano volvido, chega a vez de o realizador argentino Gastón Solnicki apresentar no Festival de Veneza (que acolheu igualmente, há dois anos, a sua extraordinária última longa, Kékszakállú (2016)) Introduzione all’Oscuro, um filme dedicado ao seu amigo.
Longe de uma biografia ou panegírico, o filme constrói-se em diversas frentes, que no seu conjunto pretendem dar forma a uma celebração da vida do defunto, assim como tornarem-se num seu retrato indireto.
Porventura influenciado pela Teoria da Paisagem de Masao Adachi, expressa em A.K.A. Serial Killer (1969), e pela grande ligação que Hurch tinha à cidade, Solnicki mergulha em Viena, pretendendo capturar algo das suas ruas e da sua cultura. Por um lado, a arquitetura vienense permite ao argentino executar os seus caraterísticos planos maioritariamente fixos e simétricos, de estética muito cuidada, que conferem aos seus filmes, apesar da sua personalidade, uma certa frieza observacional e um andamento algo langoroso, que tão bem assentam o seu sentido de humor. Por outro, a exploração da cultura vienense serve de mote para muitas das cenas do filme, quer elas tomem lugar numa chocolataria, num alfaiate, num café ou lidem com o vastíssimo património musical de Viena – o título do filme vem de uma composição do italiano Salvatore Sciarrino (curiosamente, laureado do Leão de Ouro da Bienal de Veneza, na sua secção dedicada à música), um excerto da qual é aqui executada pela célebre Klangforum Wien.
Existe também um registo de uma tentativa de aproximação por parte do próprio Solnicki a Hurch, através da revisita de lugares que costumava frequentar e reprodução de alguns dos seus hábitos. É frequente algumas destas sequências serem finalizadas por um plano em fundo negro de um objeto caraterístico destes sítios, objetos estes que, a par de algumas cartas e postais que Hurch enviou ao realizador, funcionam como retratos, lembrando o trabalho fotográfico de Matthias Schaller. Esta procura é, porém, menos emotiva do que estas palavras a possam fazer parecer, embora não por isso menos genuína: o filme contraria frequentemente estes momentos com piadas visuais encenadas por Solnicki (como, por exemplo, quando, no começo do filme, a grandeza da lápide de Beethoven é seguida pela pequena placa com o nome Hans Hurch), ou através da narração sarcástica que aponta mais que uma vez a necessidade do filme de mais perversão.
Apesar da referência à peça de Sciarrino, poder-se-á ver no oscuro do título uma referência à morte. Nesse caso, e todavia o evento seminal desta obra seja, efetivamente, uma morte, não seria descabido ver nesta escolha um deliberado desencaminhamento do espetador, pois, mais que tudo, esta é uma obra que celebra a vida, sendo a ela uma mais apropriada introdução do que a outra coisa.