Já não somos uma sociedade machista e quase cega por ídolos?
Um dos grandes perigos quando discutimos certos assuntos, incluindo aquele que passa diariamente nas televisões nacionais, é a desinformação por parte de algumas pessoas que participam no debate. Indo ao caso em concreto, uma das grandes dificuldades em discutir este tema em Portugal é, de forma sucinta, a sociedade ter colocado o atleta Cristiano Ronaldo num pedestal. Para uns é Deus no sentido em que faz milagres com a bola (até aqui tudo bem), para outros trata-se de um deus por ser um ser intocável, em vez de um cidadão comum às quais as leis são, pela definição, obrigatórias.
Durante a última semana, várias personalidades, desde comentadores políticos a pessoas famosas, debateram este tema exaustivamente. O caso em concreto tem um interesse relativo. Por outras palavras, o facto de se tratar do atleta em questão é o mínimo, apesar da pirâmide de relevância estar claramente invertida nos media. Porém, o que o caso significa em Portugal – em variadíssimos outros casos já tinha sido demonstrado – é outra coisa: revela uma sociedade portuguesa brutalmente machista em que até algumas mulheres incentivam e aumentam esta toxicidade.
Quando mulheres, algumas apresentadoras de televisão que têm peso na opinião social, evocam o argumento na praça pública de que só uma pessoa ingénua é que iria para o quarto do alegado criminoso sem saber que iriam praticar sexo e que, de forma consequente (supõe-se), a rapariga teria de aceitar quaisquer tratos e vontades do homem, faz com que o cerne do debate seja ofuscado e a relevância do mesmo entre em estado de ebulição. Este tipo de lógica é altamente perigosa, porque parte de premissas erradas. E é por isso que, por um lado, é-me mais gratificante debater a discussão, até relacionado com outras situações em Portugal.
Uma ideia que pode ser polémica, tendo em conta a sociedade actual machista onde vivemos: uma prostituta tem o direito de negar algo que não acordou com o seu cliente e, caso isso não seja respeitado, acusá-lo de violação. Outro exemplo, aparentemente polémico na nossa sociedade: uma mulher pode acusar o seu próprio marido de violação, como é óbvio. E isto entra em choque com a nossa própria legislação que distingue de forma altamente perversa o que é violação de sexo unidirecional, como percebemos pelo caso do Porto ou pelos inúmeros casos de agressão doméstica, um dos crimes mais cometidos no nosso país, que é o número um na União Europeia.
Aproveitando a decisão da Relação do Porto, cujo resultado inflamou duas marchas no Porto e Lisboa, exponho outro argumento tóxico: existia um ambiente de sedução, consequente de se tratar de uma discoteca, a mesma lógica pode até ser aplicada a um bar. Um excelente argumento que dá espaço a quaisquer desejos e fantasias doentias que possam surgir por parte de um potencial violador. A ideia de que existem espaços físicos no mundo onde certas leis são substituídas pela selvajaria carnal não pode sair da boca de pessoas supostamente inteligentes ou com formação académica para julgar e com um determinado tipo de moral. Em certos casos não é tido em conta o facto de existir uma enorme disparidade entre o poder mediático dos dois, sendo um dos casos evidentes o do produtor americano Harvey Weinstein. Não se trata meramente de uma luta judicial entre dois cidadãos comuns, no sentido que anteriormente referi. Trata-se, sim, de uma luta entre uma alegada vítima quase anónima e o outro lado que vai para além de uma mera pessoa comum: são os fãs, os advogados poderosíssimos, as sociedades machistas, conservadoras e, também muito importante, as redes sociais onde todos dão opinião de forma quase instantânea, com pouca reflexão/distanciamento, e no calor das emoções.
O próprio crime de violação é muito difícil de ser provado nos EUA e indo para os tribunais, caso não seja provado que ocorreu, é como ir de forma dolorosa para o inferno. E, assim, surge o argumento: então porque é que ela aceitou o dinheiro se foi violada? Existem várias possíveis razões nestes casos, algumas dadas pela própria Kathryn Mayorga no caso presente nos media actualmente, que, mesmo podendo serem colocadas em causa, (a sua legitimidade), são relevantes para o debate actual do tema em questão. E, em defesa das vítimas de outros casos de violação, sou obrigado a expor este ponto: entrar pelo caminho judicial e, por consequência, mediático é a fórmula perfeita para destruir a vida de uma pessoa. O acordo extrajudicial, que também foi muito comentado e pervertido pela opinião pública, mostra claramente que os poderosos conseguem safar-se de enfrentar a Justiça, algo extremamente errado e imoral que naturalmente entra em contradição com um lado bondoso e exemplar que possa existir no quotidiano.
Como sociedade, continuamos a estar mais preocupados em defender certos lados e a comentar certos casos de violação. O mesmo aconteceu na génese do movimento MeToo nos EUA, através de argumentos como “ela só quer ganhar dinheiro”, “ela sabe bem o que iria fazer”, “ela trabalhava num bar, então não tem moral para falar”, “a sair à rua com aquelas roupas estava a pedir” e “ela devia sentir-se grata por poder ter feito sexo com o grande…” não vamos poder discutir o que realmente interessa como sociedade.
Somos uma sociedade machista, preconceituosa e que se agarra a ídolos, não somos? Ou ainda há dúvidas disto? A minha opinião relativamente ao profissionalismo e qualidade do Cristiano, como atleta, não vai mudar com o caso (exactamente por isso não estar em causa), a mesma ideia que o Presidente da República, e bem, afirmou. Todos temos o direito de fazer os nossos juízos morais relativamente a este caso e a outros casos judiciais. Não pretendo, mesmo assim, fazê-lo aqui e, assim, defender um dos lados, até porque ainda não tenho uma opinião formada. No entanto, é de realçar a forma como os media trataram este assunto: uma verdadeira turbulência de informações, algumas contraditórias, em que as suspeitas também se tornam rapidamente em sentenças. Independentemente disto, este é um caso bastante claro de que, para estas coisas, somos um povo muito unido e investimos nas frentes erradas ou pelo menos da forma errada. O caso é difícil de debater e dar tempo para a justiça actuar é também cada vez mais complexo com o “aqui e agora” das redes sociais. Mas uma coisa é fácil de escrutinar e de comentar: as opiniões de algumas pessoas com foco mediático na nossa sociedade, quer seja na televisão ou nos jornais, não são as mais adequadas para gerarem uma discussão saudável sobre o tema.