‘Jackie’, o brilhantismo de Natalie Portman
Após o excelente The Club, exibido em Portugal durante o ano passado, Pablo Larraín volta ao nosso país, e à ribalta, com Jackie. Nomeado para três Óscares, é sobretudo pela excelência da interpretação de Natalie Portman que o filme tem sido reconhecido. Trata-se de uma consequência tremendamente injusta face ao valor do filme, mas que é perfeitamente compreensível por ser, possivelmente, a melhor interpretação na carreira da actriz, ainda que esta lhe possa não valer um Óscar como aquele que acabou por receber devido a Black Swan.
Este filme biográfico, com uma narrativa não linear, explora as consequências que o assassinato de John F. Kennedy teve sobre a sua mulher Jackie, e como esta lidou com o luto e com as consequências públicas e privadas dessa morte.
Natalie Portman consegue trazer para este Jackie duas camadas da mesma pessoa; duas personalidades diferentes, em diferentes medidas, perfeitamente orquestradas e doseadas. Natalie Portman não representa só o papel – literalmente – de Primeira Dama enlutada pelo assassinato do seu marido JFK, mas também o de Jacqueline Kennedy, a mulher, mãe de duas crianças, que nem sempre está à vontade na pele da primeira, nem tão pouco estará de acordo com o que tem de fazer enquanto tal.
Pablo Larraín e Noah Oppenheim conseguem explorar o conflito interior desta personalidade intrigante que foi Jackie Kennedy de forma soberba (destacando-se aqui uma visita guiada pela Casa Branca onde o desconforto é notório, quase palpável). No entanto, tal seria sobejamente mais complicado se a escolha pela actriz não tivesse, por infelicidade ou qualquer outra vicissitude, recaído sobre Natalie Portman. A actriz consegue, em cada gesto, em cada olhar, em cada hesitação e em cada fala, recriar a complexidade psicológica de uma personalidade extraordinária, ainda por cima numa altura conturbada. Um character study soberbo.
Há um compromisso assumido desde cedo entre a câmara de Larraín e Natalie Portman. Alguém que procure um retrato mais abrangente dos eventos históricos sairá desiludido da sala de cinema. São poucas as vezes que a personagem de John F. Kennedy, aqui interpretada por Caspar Phillipson (de notórias semelhanças físicas com a personagem que interpreta) aparece, e quando o faz é para dar a ligação necessária à entrada em cena de Jackie.
Ao longo do filme são várias as personagens que têm apenas o espaço estritamente necessário para colocar Portman sob foco central da cena. Do jornalista responsável pela entrevista (Billy Cudrup) até Bobby Kennedy (interpretado por Peter Sarsgaard), ou Nancy Tuckerman, interpretada por Greta Gerwig, todos são orientados da melhor forma para retirar algo de Natalie Portman. E todos eles conseguem, sobretudo o padre interpretado pelo já falecido John Hurt, com o qual Jackie contracena já no final do filme, e com o qual tem alguns dos momentos mais reveladores desse conflito interior por si vivido e a explicação (ou interrogação) para algumas das suas atitudes. É por si ou pela continuação do legado do seu marido, que são tomadas muitas das atitudes de Jaqueline Kennedy?
Mais que um retrato histórico, Jackie é um fabuloso retrato psicológico de uma personalidade complexa como a de Jacqueline Kennedy. Não se trata de um filme unicamente sobre luto. Trata-se de um filme sobre uma mulher que assume um legado, sobre conflitos interiores, sobre o binómio figura pública/vida privada e de que forma a primeira exerce influência notória sobre a segunda, e vice-versa.
Ademais, Jackie vem comprovar também o porquê de Pablo Larraín ser um dos maiores e mais interessantes realizadores dos nossos tempos. Sem medo de correr riscos e de pisar terrenos complicados, o realizador chileno traz-nos uma biopic que recusa cair no campo do convencional, defeito tão facilmente apontado a filmes do género. Para isso, Larraín tem também a ajuda da ousada banda sonora de Mica Levi, conhecido anteriormente pelo seu trabalho em Under The Skin.