“J’ai Perdu Mon Corps”, de Jérémy Clapin: uma mão sem corpo atravessa Paris
Uma mosca voa ao redor de uma pequena poça de sangue. Um jovem adulto está deitado no chão ao seu lado. Perto de si, estão os seus óculos e a sua mão. Estas são as primeiras imagens do filme animado J’ai Perdu Mon Corps (Eu Perdi o Meu Corpo), e capturam perfeitamente o ambiente e mistério da história que estamos prestes a acompanhar.
Em 1964, David Levy criou uma personagem que cativou um público gigante, quando na Família Addams uma mão chamada de Coisa protagonizava alguns dos momentos mais caricatos da série. Se a Coisa fosse objeto do seu próprio e emocionante drama romântico, provavelmente o resultado seria muito próximo desta animação. Esta curiosidade é delicada e brilhantemente animada, e divide-se em duas partes: é um filme de ação a 5 dedos, ao mesmo tempo que é uma história de amor, utilizando uma montagem cruzada que alterna entre as duas linhas narrativas em tempos de ação diferentes para estabelecer paralelismos interessantes entre a mão e o corpo, quando o corpo ainda tinha mão (ou, nesta perspetiva, quando a mão ainda tinha corpo). Naoufel (Hakim Faris na versão original, Dev Patel na dobragem inglesa), o corpo cuja mão procura, é um órfão de pais imigrantes, que atravessa uma viagem que o leva de criança idealista e sonhadora, a um adolescente melancólico, até se tornar um adulto que tenta fazer acontecer um romance platónico com uma mulher com quem conversa através do comunicador da campainha de um prédio parisiense.
A nossa protagonista de 5 dedos ganha consciência e escapa de um hospital. Assim começam uma série de aventuras fascinantes que a vêm a arrastar-se por condutas de ar condicionado, apanhar boleia em camiões do lixo, saltar por entre edifícios e improvisar soluções para atravessar desafios e distâncias que não foram desenhados para serem ultrapassados aos palmos. A heroína batalha contra ratos e pombas numa nobre aventura que nos faz torcer por uma personagem que está conseguido de uma maneira antropomórfica e sentimental tão natural que por vezes nos esquecemos da absurdidade que é estarmos a criar empatia por uma mão. São estas cenas, em que a mão atravessa uma cidade aterrorizadora devido à sua escala, em que o conceito do filme se prova infalível, e a sua execução se mostra mais do que eficaz. À medida que o ser se vai resignando à sua condição (isto é, de ser uma mão), os seus movimentos vão-se tornando cada vez mais familiares e intuitivos, passando de algo que se assemelha a um gato careca recém-nascido que tropeça à mais pequena irregularidade, até ganhar tanto de humano que parece suspirar e assustar-se.
Em paralelo com a aventura da mão, vai-nos sendo apresentada a vida de Naoufel. Acompanhamos a morte dos seus pais num acidente de viação, o incidente que instiga a sua ida para Paris, e o início da história de amor entre ele e Gabrielle (Victoire Du Bois), que conhece enquanto trabalha como estafeta para uma cadeia de pizzarias. Apesar de nunca se verem, mantêm uma conversa comprida pelo intercomunicador do prédio de Gabrielle. Fascinado por essa troca de palavras, Naoufel descobre onde Gabrielle trabalha e decide fazer-lhe uma visita que acaba com este a ser contratado como ajudante do tio de Gabrielle numa pequena carpintaria. Gabrielle não sabe que Naoufel é o homem com quem falou pelo intercomunicador.
O público não o sabe à partida, e aos poucos o filme vai ganhando outra luz quando nos apercebemos que todos os pequenos detalhes que nos vão sendo apresentados (como as aulas que Naoufel recebe sobre como apanhar uma mosca) vão ser extremamente importantes na resolução do filme, e um dos dispositivos utilizados para permitir o retorno – que ao início parece quase acidental, mas que se torna cada vez mais obviamente estudado – à aventura da mão. O sentimento de desespero ao ver um filme como este, que utiliza o que o público ainda não sabe não só como forma de construção de personagem, mas também como motor que faz as linhas narrativas avançar, faz com que continuamente as nossas expectativas e suposições sejam subvertidas, enquanto as memórias vão sendo reveladas (e sendo que se trata de uma mão, é uma perspetiva fascinante que se consegue aqui, sendo que todas as memórias têm algo de muito tátil, de textura e sensação palpável).
Num estilo de animação que faz lembrar a subtileza das obras mais naturalistas dos Estúdios Ghibli (como A Princesa Mononoke ou A Tartaruga Vermelha), mas com uma fluidez que não é comum para os animadores asiáticos, este acaba por ser um filme imensamente francês. Talvez demasiadamente francês, na melancolia, na tentativa de intelectualidade nos diálogos, na artificialidade e exagero emocional da convivência humana, nos cigarros no telhado, mas tudo isto parece fazer muito sentido numa animação, onde as regras do naturalismo são, à partida, mais livres ou até atiradas janela fora. A banda sonora de Dan Levy (um esforço a solo fascinante de metade do conjunto de pop eletrónico The Dø) ajuda a criar ainda mais profundidade emocional e a tornar o investimento do espectador na obra algo que vale por si mesmo, em vez de nos fazer ansiosamente querer ter nas mãos todas as respostas.
J’ai Perdu Mon Corps examina os conceitos de livre arbítrio contra determinismo para estabelecer uma tese sobre como o destino afeta a condição humana. Naoufel tem dificuldades em apanhar uma mosca em repouso na mesa, pois sempre que tenta agarrá-la, ela é demasiado rápida e foge do seu alcance. O pai de Naoufel aconselha-o a antecipar os movimentos da mosca e a tentar apanhá-la pelo lado, não de trás. Simbolicamente, toda a história desenvolve e procura apoio nesta inabilidade de Naoufel em “fintar o destino” enquanto tenta continuar em frente com a sua vida.
O final do filme é algo muito pouco convencional, escolhendo responder aos elementos recorrentes que tinham vindo a ser desfiados durante o filme: a obsessão de Naoufel por igloos, o leitor de cassetes da sua infância, a vista de uma cidade do topo de um edifício abandonado, ou uma aposta, confessada a Gabrielle do topo do mesmo edifício, de que conseguiria alcançar o tipo de feito totalmente irracional que é necessário para alterar um destino. É este o tipo de significância da última cena do filme que, ao não responder a nenhuma grande questão narrativa, abre um leque infinito de possibilidades para os personagens do realizador, Jeremy Clapin. É um final profundo e ambíguo, pois quer acreditemos no livre arbítrio, quer faça sentido a teoria do determinismo, nenhuma delas consegue prever o futuro.