James Bond não é real, nem tem de o ser. Não matem a personagem de 007
A personagem de 007 pode passar a ser interpretada por uma mulher. 70 anos de história nos livros e no cinema não significam nada?
Quando Ian Fleming criou a personagem James Bond descreveu-a como um homem confiante, inteligente e que nunca perde a compostura sob pressão. Deu-lhe uma licença para matar, ensinou-o a pedir Vodca Martini como um cavalheiro e atribuiu-lhe um carisma sexual irresistível. O espião mais letal do Reino-Unido, que fará tudo ao seu alcance para proteger a Rainha e a Coroa Britânica, é a inveja de todos os homens e a cobiça de todas as mulheres. Esta fórmula de sucesso, imaginada por Ian Fleming, vendeu mais de 100 milhões de livros e facturou mais de 6 mil milhões de euros no cinema, dando origem a uma das sagas cinematográficas mais bem-sucedidas de todos os tempos. É a prova de que este homem de vícios e coragem, mulherengo e desordeiro, é popular entre a audiência. Eu gosto dele assim. James Bond é uma personagem ficcional e permite-me viver experiências que me estão vedadas por causa da minha carne e dos meus ossos: eu sou real, 007 não. O poder e o encanto da ficção residem no facto de o imaginário não estar circunscrito aos limites da realidade. A ficção explora cenários hipotéticos. Permite-nos voar, viajar por entre as estrelas, lutar contra monstros e dormir com várias mulheres. Mas é tudo fantasia. Não é real, nem tem de o ser.
A ficção não deve ser tão permeável à realidade e James Bond não tem de ter uma consciência social directa. Não tem de fazer jus ao movimento #Metoo e não tem de passar a ser monógamo, a deixar de beber e a evitar andar à bulha por ser um mau exemplo para os rapazes de hoje em dia. Isso são tretas. É como dizer que os filmes do Tarantino ou o Joker do Christopher Nolan são responsáveis pelos massacres em centros comerciais, escolas ou igrejas, provocados por um indivíduo armado. Evidentemente que a sociedade tem o dever de se proteger dessas pessoas, assim como não podemos ignorar que a integridade das mulheres é diariamente posta em causa por bárbaros ordinários. Mas a solução não passa por mexer na ficção, naquilo que é o escape da realidade. A solução passa, sim, por um maior controlo desses indivíduos, seja através de melhorias do sistema de educação ou mais investimento em instituições mentais. A destruição do entretenimento é escusada. O agente secreto mais famoso do mundo não deve ser interpretado por uma mulher para simbolizar a igualdade de género, o fim do machismo, a política de tolerância zero face aos abusos dos homens ou a equidade de oportunidades no mundo do cinema. Tudo isto são lutas meritórias, mas James Bond pode ignorá-las precisamente porque pertence ao reino do faz-de-conta.
Não quero uma mulher a fazer de 007. Gosto do meu herói como ele é. Com as suas imperfeições, com o seu patriotismo exacerbado, com o seu smoking e com a sua Walther PPK. Não quero ver um 007 de rabo-de-cavalo e saltos altos a escapar à morte no último segundo mas não me importo que isso seja explorado com outras personagens como a Lara Croft, Scarlet Witch, Mulher Maravilha, Princesa Leia, Katniss Everdeen, Mulan, e tantas, tantas outras. É a minha realidade paralela, a minha aventura masculina num mundo onde há espaço para o socialmente inaceitável, onde não faz mal ser cruel, elegante, culto, musculado, solitário, indomável, alcoólico e apaixonado pelo perigo e pela beleza feminina.
Texto de Vicente Lourenço
Tem 23 anos, frequenta o mestrado de Ciências da Comunicação na Universidade Católica e trabalha como jornalista na SIC.
No dia-a-dia, esforça-se por ter um espírito crítico sobre a sociedade em que está inserido.