Jane Magnusson: ‘Todos os filmes de Bergman são interessantes, mesmo os realmente maus’
No centenário de Bergman, voltamos a Bergman. Seja para descobrir, rever e aí também encontrar algo novo. Como a abordagem da jornalista e documentarista sueca Jane Magnusson ao ano zénite da obra deste criador – 1957 – ao mesmo tempo que levanta o véu sobre alguns temas fraturantes sobre a sua pessoal sempre ligada à sensacional carreira.
Bergman: a Year in a Life, apresentado no passado festival de Cannes, na secção Cannes Classics, aborda também o lado predador do realizador, em particular as relações com grande parte das suas actrizes e ainda a sua incapacidade para ser marido e pai.
Com este filme, Magnusson prolonga o trabalho sobre o grande cineasta iniciado em Trespassing Bergman, onde vemos, por exemplo, Wes Anderson, Woody Allen, Martin Scorsese ou Alejandro Iñárritu refletirem sobre a carreira do mestre em visita à sua casa em Faro, na Suécia.
Apesar deste documentário ser exibido apenas em Outubro, pela Leopardo Filmes, levantamos já o véu, com esta entrevista exclusiva. E que poderá (deverá) ser complementado por outras iniciativas da comemoração do centenário de Bergman, desde logo a visão de Margarethe von Trotta, Searching for Ingmar Bergman (com distribuição da Outsider Filmes) além da reposição de muitas das suas obras – Saraband está já em exibição no cinema Ideal -, e ainda o espectáculo A Meio da Noite, da coreógrafa Olga Roriz, exibido no Festival de Almada, hoje dia 14, e depois no Teatro Camões, em Outubro.
Neste seu processo de pesquisa, houve algo que sobre a vida e carreia de Ingmar Bergman que a tivesse surpreendido?
Quando comecei a fazer este filme só sabia que nesse ano de 1957 ele tinha estreado dois filmes, O Sétimo Selo e Morangos Silvestres. Esses foram filmes incríveis. Estava tão fascinada por esses dois filmes terem sido lançados no mesmo ano. Mas qualquer cinéfilo de Bergman sabe disso. Só que eu não sou cinéfila de Bergman, apenas quero contar uma boa história.
Só que ele não se ficou por aí, pois foi?
Exacto. Quando pensei na ideia maluca de fazer um filme sobre esse ano incrível e comecei a minha pesquisa descobri então que ele também fez um tele-filme nesse mesmo ano. O que é fantástico. Entretanto, percebo que fez também duas produções teatrais gigantescas (incluindo Peer Gynt, de cinco horas). E isso eu não sabia quando comecei. Para além disso fez ainda duas produções de rádio. Para além disso tinha ainda essa vida pessoal caótica. Foi director artístico do Teatro Municipal de Malmo e também professor. Entretanto, a meio da produção vi uma entrevista com a Bibi Andersson onde diz que depois de fazer Morangos Silvestres tirou um fim-de-semana e logo depois foram para Estocolmo para rodar No Limiar da Vida. Outro filme?! Mas isso é loucura. Eu pensei que ela estava velha e a trocar os fatos.
Ou seja, outro filme em 1957?
Ora, o filme foi lançado em Março de 58, o que significa que foi feito no ano anterior, não é? Então, essa foi a coisa mais surpreendente que descobri. Portanto, não foi apenas um ano fantástico, como também um ano louco.
Mas como refere no filme, o ano de 1957 foi também um ano de viragem criativa.
Há uma frase bonita que ele diz em Morangos Silvestres que é: “eu tenho de ser tanto a árvore como o machado”. Acho que é uma óptima expressão.
Óptima e assustadora também…
Sim, mas ele é tão íntimo e honesto que se torna interessante para nós. Porque não faz generalizações.
Talvez por isso fiquemos também com a ideia de que podemos conhecer a vida de Ingmar Bergman através dos seus filmes. Concorda?
Vejamos, Bergman é incrivelmente honesto. Há coisas que não são muito agradáveis, e que estão no filme, como as duas simpatias nazis, como ele tratava as mulheres, que foi um pai ausente. Mas isso são coisas que ele fala sobre si mesmo. Nesse sentido, nada disso é realmente novo. São coisas conhecidas. Tanto na sua biografia como em entrevistas. Mas porque ele é um ícone e as pessoas gostam muito dele, preferem não abordar isso.
Às vezes ficamos também com a ideia de que ele seria até um mentiroso compulsivo. Pode elaborar sobre isso?
O próprio Bergman afirma que foi na infância aprendeu a mentir evitando assim a ira do pai. Não é isso contar histórias? Estamos apenas a mentir. Acho que essa foi uma forma de sobreviver na sua infância. Algo que trouxe consigo mesmo em adulto. Isso é ser um óptimo contador de histórias. Mas nos seus filmes ele não mente. Ele está a construir um mito em torno de si próprio.
Acha que essa forma de abordar a sua própria realidade era uma forma de terapia?
Sim, podemos dizer isso. Ele é terrivelmente honesto, tal como os seus filmes. Em Lanterna Mágica e na sua autobiografia ele diz coisas como esta “eu era um marido terrível, acabei com a minha segunda esposa de uma forma horrível e estou muito envergonhado do que eu fiz. E se você quiser saber o que eu fiz, pode ver em Cenas da Vida Conjugal” (mini-série 1973), que pode ser encarado literalmente como uma cena de separação. Nesse sentido, ele vai dizendo ao mundo através dos seus filmes como foi tão bera. Mas é também um grande artista por isso mesmo, por essa honestidade.
Sentiu algum incómodo por fazer um filme sobre um cineasta?
Todos os filmes que fiz são documentários. Realmente não pensei nessa questão. Mas é interessante perceber como ele trabalhou e poder ver imagens dos bastidores. É interessante, porque muitas pessoas compartilharam as suas imagens privadas a cores que tinham desde a rodagem de Morangos, e é muito bonito podemos ver isso agora. No fundo, imagens que estavam no armazém de alguém.
Nesta comemoração do século de Bergman, teve algum problema em trabalhar esse material, nomeadamente com a família?
O meu projecto anterior chama-se Trespassing Bergman (de 2013, em que vários realizadores visitam a casa de Ingmar Bergman) e é também sobre os seus melhores filmes. Então as pessoas acham que eu posso estar obcecado por Bergman. Mas eu não estou. Na verdade, não estava tão interessada assim em fazer outro filme sobre Bergman, mas depois encontrei o ano de 1957, que é outra história, uma história completamente diferente. Explorando a super-produtividade que teve nesse ano foi interessante.
Bergman tem uma abordagem muito pessoal ao universo feminino. Tanto na vida real, pois foi casado com diversas mulheres diferentes e poderá até ter tido um comportamento algo reprovável. Como acha que hoje em dia seria visto?
Fazem-me muitas vezes essa pergunta. Mas é um pouco incómodo que fosse constantemente infiel com mulheres que estão geralmente na posição de jovens actrizes que dependem dele. Por exemplo, em 1957 ele era casado, mas também tinha um relacionamento com a Bibi Andersson. Talvez porque também ela estava numa posição de dependência dele que é algo que nós não gostamos hoje. Entretanto, conhece ainda outra mulher que se tornará sua quarta esposa.
Acha que ele tinha tempo para dormir?
Acho que não (risos). Acho que ele queria afirmar-se como o grande Bergman que ainda não era.
Quanto sua simpatia pelos nazis, acha que foi digerida com o povo sueco na época? E como ele lidou com isso ao longo dos anos?
Acho que é estranho com sua simpatia nazista. Ele escreve sobre isso na Lanterna Magica que sai nos anos 80. Por isso, não é nada de novo. E fala também sobre isso numa entrevista a um jornalista americano e também a uma sueca. E fala de uma forma quase humorística. Percebe-se que ele gosta de falar sobre essas coisas. Só que o povo sueco não quer falar sobre essas coisas. Até porque nessa altura ele não estava sozinho na Suécia com essas simpatias. No entanto, foi o único a ter coragem para abordar o assunto sem preconceito.
Acha que também podemos entender o que Lars von Trier disse aqui em Cannes sobre os nazis há sete anos atrás?
Não sei, percebo qual era a ideia do Lars von Trier. Entrevistei-o alguns meses depois do incidente de Cannes. De qualquer forma, um mês depois começou a dizer-se que entendia o Ingmar Bergman e que entendia Hitler… A sua publicista estava quase fora de si … (risos) Claro, não incluí isso no meu filme.
Posso perguntar-lhe, qual é o seu filme favorito de Bergman?
Fazem-se muitas vezes essa pergunta, devo dizer sim, e normalmente respondo com um filme diferente. Aqui em Cannes vou dizer Sonata de Outono, que gosto bastante. Na verdade, todos os filmes de Bergman são interessantes, mesmo os que são realmente maus.
E quais são realmente maus? Talvez This Can’t Happen Here, o filme proibido de Bergman?
Esse é realmente um filme muito mau do Bergman. Tive ocasião de o ver mas não tive autorização para o mostrar no meu documentário. É uma espécie de thriller de espionagem com má continuidade e maus actores. É muito mau do ponto de vista técnico. No entanto, ele fez um bom trabalho. Mas quase ninguém viu.
Talvez porque estamos aqui em Cannes, podemos tentar compreender o que se passou com Harvey Weinstein?
Eu acho que o que Harvey Weinstein está acusado é muito mais forte do que qualquer coisa que Ingmar Bergman tenha feito. E nunca foi acusado de nada. É claro que nos anos 90 ele tinha muito poder na vida cultural sueca. No entanto, só podemos ter esse poder se alguém nos der.
Se calhar também porque ele porque fazia tudo aquilo que fazia…
Exactamente. Em todo o caso, a sua vida bem como da sua família foi devidamente retratada. Por exemplo, o filme de Bille August As Melhores Intenções é sobre os pais de Ingmar Bergman. Isso bem como outras duas séries sobre os pais de Bergman. Então não há nada que não saibamos sobre esses pais na Suécia. Foi a elite cultural sueca que construiu este monumento. E continuavam a dar-lhe dinheiro, mesmo se ele se portasse mal. Acenando com os melhores trabalhos, claro que continuava. Por isso, o Bergman não é culpado por ter tido todo esse poder. Pelo menos não sozinho.
Olhando para trás, para a filmografia do Bergman, como encara todo esse trabalho? Acha que mantém alguma modernidade?
Acho que sim. Acho que Bergman está muito à frente de seu tempo. Persona, é ainda hoje um certo de filme punk. E em O Silêncio há algumas cenas que ainda hoje não se conseguem fazer. Acho que estes filmes são ainda hoje muito relevantes hoje. No entanto, há um filme, All These Women, que ele faz entre O Silêncio e Persona, que é um filme terrível. É horrível e ele faz isso entre essas duas obras-primas. Acho até divertido porque o torna mais humano. Ou seja, nem tudo o que ele toca se converte ouro. Em 1957, sim. Mas ele tem também os seus altos e baixos.
Ou seja, o Bergman também foi autorizado a falhar.
Repare, ele tem treze anos de cinema antes de fazer O Sétimo Selo. Mas os seus primeiros filmes não são lá grande coisa. E, claro, tem esse filme que foi tão mau que ele próprio o proibiu. De qualquer forma é interessante porque também é um filme de Bergman. Mas como esse homem pode fazer esse filme horrível? Quando ele pode fazer todos esses outros grandes filmes. Incrível…
Sentiu que neste filme teve de deixar muita informação de fora?
Bem, tentei me concentrar em 1957, mas é claro que há muito mais a dizer sobre Bergman. Felizmente, tenho a série de televisão que fiz sobre ele. Por isso, não fiquei triste por deixar de fora certas histórias.
Por fim, consegue perceber a razão pela qual a seguir a esta grande referência do cinema sueco não vemos tantos descendentes?
A Suécia é um país pequeno. E o Bergman comeu muitos subsídios e talvez até muita inspiração. No entanto, Bergman colocou a Suécia no mapa, no mundo do cinema e no mundo. E é por isso que ele foi óptimo. Mas também impediu que muitos cineastas suecos entrassem no mundo do cinema.
Entrevista de Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt