Jesus e a «apóstola» divorciada
Ficcionista, ensaísta, poeta, tradutor, Frederico Lourenço nasceu em Lisboa, em 1963, e é actualmente professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Traduziu a Ilíada e a Odisseia de Homero.
Como sabem as pessoas que leem atentamente os quatro Evangelhos, as afirmações de Jesus sobre o divórcio não são exactamente coincidentes nos quatro textos fundacionais do cristianismo. Nos Evangelhos de Marcos e de Lucas, Jesus condena, sem contemporizações, o divórcio. No Evangelho de Mateus, admite-o em caso de «porneia» (à letra «prostituição», pelo que se entende, à luz da mentalidade judaica do século I, a infidelidade da mulher ao marido). No Evangelho de João, não condena de todo o divórcio, porque é um tema que nunca lhe aflora na boca nesse mais extraordinário e divino de todos os textos do Novo Testamento.
É só no Evangelho de João que Jesus perdoa a mulher adúltera (com todas as dúvidas que esse episódio levanta no que toca à sua história textual, mas sobre isso remeto para as notas respectivas no Volume I da minha tradução). E é no Evangelho de João que acontece uma coisa extraordinária: Jesus senta-se a falar com uma mulher (já de si algo de incrível, atendendo ao mundo judaico em que ele vivia); que é samaritana (portanto membro da «raça rafeira e apóstata» odiada pelos judeus); e cinco vezes divorciada.
Jesus pede de beber a essa mulher, a essa samaritana inúmeras vezes impura. E diz à mesma mulher que, se ela lhe tivesse pedido a água gorgolejante da vida eterna, ele lha teria dado.
Depois diz-lhe: «Vai, chama o teu marido e volta cá», na plena consciência de que o «marido» da mulher é um homem com quem ela nem sequer é casada: é já o sexto homem da vida dela. Mas Jesus chama-o; Jesus aceita-o; e depreendemos pelo texto que Jesus estaria disposto a dar, também a ele, a mesma água da vida eterna.
A mulher samaritana, deslumbrada com Jesus, vai anunciá-lo aos samaritanos; e por isso, o grande especialista do Novo Testamento da Universidade de Yale, Paul N. Anderson, chama a esta figura a «apóstola» dos samaritanos («The Riddles of the Fourth Gospel», 2011, p. 16).
Na igreja católica, pessoas divorciadas e recasadas não podem receber a Eucaristia, a não ser que abdiquem de viver como marido e mulher. No entanto, à mulher cinco vezes divorciada e a viver com um sexto homem com quem não era casada, Jesus ofereceu a água da vida eterna. E mandou-a ir buscar o homem com quem ela não era casada, a quem (graças ao jogo de palavras no texto grego) Jesus teve a elegância, a compreensão e o amor de chamar marido dela.
Na imagem: Jesus e a Samaritana, por Angelika Kauffmann