Jornalista Pedro Coelho e a loja que vende visões do mundo
A ideia de ser jornalista surgiu-lhe aos 14 anos, de mansinho, na altura sem saber bem como. No entanto, para ele hoje está claro o sítio onde se começou a moldar como repórter: na loja do pai.
Passados 38 anos, trabalha na SIC. Entra nos estúdios como entrasse em casa, com um sorriso de bom dia ao porteiro e movendo-se com confiança pelas diferentes assoalhadas. Pedro Coelho, nesse dia, está vestido de forma discreta: com calças de ganga, uma camisa branca e polo azul clarinho. No entanto, a sua presença nos estúdios não passa despercebida: um colega apanha-o no corredor e começa a fazer-lhe perguntas. Coelho, com a sua sempre serena expressão feita de olhos azuis-claros, cabelo loiro ralo e pele clara, vai assentido e respondendo no seu usual tom baixo. Discutem a promoção de uma das suas reportagens de investigação. Falam de lavagem de dinheiro e de redes desmantelados com a naturalidade de quem não é um estranho à intriga. Quando lhe pergunta quanto tempo tem disponível para continuar a discussão, diz para não se preocupar, que tinha saltado o almoço de modo a ter tempo para tudo naquele dia.
O pai de Pedro não via este futuro para o filho. Homem conservador e devoto, habitante da pequena localidade de Montemor-O-Novo, queria que Pedro optasse por uma profissão clássica: “Já que ia fazer o sacrifício de me pôr a estudar em Lisboa, queria que eu tirasse farmácia. Ele era comerciante e, na sua cabeça, ia ficar ele a gerir a farmácia”, mas Pedro nunca sequer ponderou uma profissão na Área de Ciências, «Fui de alma e coração para Línguas e Humanidades sem nenhuma hesitação. Nessa altura, o meu pai disse “já que estás nesta área que fosses para direito”. Pedro admite que poderia ter dado um bom advogado, mas sabe que dá um muito melhor jornalista. E o pai chegou a ter mesmo um papel importante nesta sua escolha.
“Se há coisa que eu detesto é que as pessoas passem o tempo a tentar controlar-me, a ver o que eu ando a fazer. Isto perturba-me. Tenho receio de que me estejam a controlar e às vezes nem estão, mas eu acho que sim”.
Trabalhar na loja dos pais, que no início era parte mercearia parte venda de decoração para casa, sempre foi uma imposição para Pedro. Todos os dias, a seguir à escola, o futuro jornalista ia ter com o pai à loja para cumprir a obrigação maçadora que se punha entre ele e a diversão com os amigos. No entanto, esta obrigação acabou por se tornar uma mais-valia. Na loja, Pedro teve acesso a uma pequena amostra do mundo que este teria de saber manusear anos mais tarde: «Eu acho que me moldei como repórter na loja do meu pai. Eu era marçano do meu pai e contactava com os diversos estratos sociais: contactava com pessoas muito pobres, com pessoas ricas e extremamente ricas. Tinha de conseguir atravessar todo este fosso social de uma aldeia pequenina do Alentejo». A família de Pedro era um dos poucos representantes da classe média em Montemor-o-Novo, estavam, assim, entre “dois mundos antagónicos”. Foi nesta posição que Pedro aprendeu a observar. “Mais do que com os livros, mais do que com a escola, mais do que com as relações de amizade, eu acho que foi aí que a aprendi a observar, em silêncio, tudo o que à minha volta se passava. Ouvia as conversas das pessoas, a maneira como tratavam os meus pais, cada uma delas de modo diferente. Foi aí que cultivei as características que tenho hoje de repórter.”
Atualmente, Pedro Coelho é um dos nomes mais conhecidos do jornalismo em Portugal. Apesar de nos últimos aos fazer maioritariamente grandes reportagens, onde aparece poucas vezes em frente das câmaras, a sua cara não passa despercebida quando este anda pelas ruas, como conta o jornalista. Tendo mesmo chegado a ser reconhecido nos lugares menos prováveis, como em Nova Iorque onde um imigrante veio ter com ele na rua para lhe dar os parabéns por umas das suas reportagens. E o caso não é para menos. Pedro Coelho acumulou um total de 22 prémios e menções honrosas ao longo da sua carreira, desde prémios da Associação de Jornalistas a medalhas do Parlamento pelo serviço aos direitos humanos. Fez todo o género de peças na SIC, mas as que lhe deram mais distinção foram as suas reportagens de investigação sobre os labirintos da política e do mundo financeiro.
Trabalhos como Profissão Ex-ministro, Assalto ao Castelo e A Fraude — que deu origem a um dos escândalos bancários mais mediáticos de sempre em Portugal — denunciaram diversos casos de tráfico de influências, corrupção e lavagem de dinheiro.
José Manuel Mestre, jornalista de Política da SIC e colega de Pedro Coelho, sente que no ambiente de trabalho da SIC, existe uma necessidade constante de o jornalista provar o seu valor dentro da empresa, mesmo quando já se têm uma longa carreira: “não acho que ninguém tenha um estatuto especial dentro da SIC, esse espaço simplesmente não existe. Pelo contrário, temos de lutar pelo nosso espaço diariamente, temos de justificar permanentemente a nossas decisões. Sendo que o Pedro Coelho, mesmo sendo um dos melhores jornalistas portugueses, acaba por também ter que passar por isto. Infelizmente há da parte de quem lidera, a vontade de mostrar que lidera e é possível que ele sinta isso”. Segundo José Manuel Mestre, esta pressão por parte da chefia torna-se até prejudicial quando recai sobre a questão do tempo: “Os jornalistas como ele, em vez de serem vistos como modelo, devido aos extensos anos de experiência, são os que são mais questionados. É um problema porque no jornalismo deve haver tempo dedicado, e quando não se dá possibilidade ao jornalista de ter este tempo para construir as suas peças, põe-se o jornalismo em causa.”
Já não vejo a minha vida profissional sem o ensino, que tem também uma componente de investigação. Acho que sou hoje um melhor jornalista porque estudo academicamente as matérias com qual me tenho que confrontar no meu trabalho de repórter. Não existem fronteiras entre um e o outro, não existem mesmo”.
Pedro Coelho admite que, por vezes, esta sensação de um controlo vindo do exterior o faz perder a concentração: “Se há coisa que eu detesto é que as pessoas passem o tempo a tentar controlar-me, a ver o que eu ando a fazer. Isto perturba-me. Tenho receio de que me estejam a controlar e às vezes nem estão, mas eu acho que sim”.
Sente também que a timidez, tão característica dele desde criança, por vezes o limita: “A minha timidez às vezes é prejudicial, eu podia chegar mais rapidamente às coisas se às vezes não fosse tão passivo, nesse sentido ainda é uma barreira. Quando eu tenho de chegar lá, eu chego lá. Por exemplo, quando estou em direto, ou quando tenho que fazer uma história para aquele dia, aí sou muito reativo. Mas se a história não é para o mesmo dia ou se eu posso ir por outro caminho, que não me obrigue ser tão direto, aí a timidez faz-me vacilar”. Mas o repórter sabe também quais são as qualidades que lhe permitiram chegar onde chegou: “Quero sempre fazer o melhor possível, quero estar sempre um passo a frente dos outros. Quando chego a um local, mesmo que os outros já lá estejam, quero ser eu a mostrar como se faz. Mais ainda, quero mostrar como posso fazer diferente, a minha obsessão pela inovação é uma coisa assustadora”. José Manuel Mestre concorda: “É um profissional com elevadíssimo grau de exigência e rigor, coloca isso em tudo o que faz, das questões mais simples às mais complexas. Questiona-se permanentemente sobre aquilo que está a fazer e a maneira como o está a fazer. A sua maior qualidade é a exigência”.
Apesar do grande sucesso que alcançou na televisão, Pedro Coelho, quando primeiro foi convidado para se juntar à equipa da SIC teve alguma resistência ao meio. Tinha a cabeça ainda no seu primeiro amor: a rádio. Um amor que o apanhou durante o terceiro ano da faculdade, em 1986, tempo da euforia das rádios piratas. Pedro começou, nessa altura, a fazer emissões com os amigos numa rádio em Montemor-o-Novo, Rádio Almansor, onde tinha programas sobre música popular de intervenção. Pedro têm uma grande apreciação por estes amigos, que o acompanhavam desde novo. Eram todos mais velhos que ele, o que lhe permitiu abrir horizontes e começar a aprender coisas que não aprendia na escola. Chegou mesmo a fazer a sua tese de licenciatura sobre rádios locais e quando acabou o curso em 1988, pareceu-lhe lógico ir estagiar para a Rádio Comercial onde acabou por ficar a trabalhar. Um ano depois, foi para a Correio da Manhã Rádio, onde trabalhou durante 4 anos.
Contudo, não tardou muito até Coelho começar a sonhar com voos mais altos: “Achava que aquela rádio estava a tornar-se pouco para mim, estava um bocadinho a adormecer”. Foi aí que recebeu a proposta que o levou a SIC: “Tive um convite do Emídio Rangel para ir trabalhar para ele. Na altura trabalhava numa rádio quase invisível, mas mesmo assim ele chegou a mim e convidou-me. Achei que seria um desafio gigante, mas achei que estava à altura dele”.
Estávamos em 1992 quando Pedro Coelho juntou-se aos vários jornalistas que fundaram a primeira televisão privada portuguesa. O jornalista lembra estes tempos com imensa nostalgia: “Era tudo novo. Rangel sabia escolher pessoas e juntou os melhores das 3 plataformas: rádio, televisão e imprensa. O arranque da SIC foi tão bom, porque nós éramos tão bons. Nunca mais isso foi possível, ainda vivemos à sombra destes anos, somos um subproduto daquilo que a SIC já foi. Nós hoje somos uma televisão igual a todas as outras, não temos diferenças“.
Os vários anos de carreira levaram a que Pedro Coelho ganhasse autonomia dentro da SIC. “Autonomia no sentido que posso escolher o que faço, a forma como o faço, fazendo a história da maneira que eu pretendo fazer. Isto é uma autonomia enorme, é um privilégio que eu não sei quanto tempo vai durar, mas foi algo que conquistei, não caiu de paraquedas, e é algo que alimento. Se o trabalho que apresento começar a correr mal, eu sei que amanhã as coisas não vão ser exatamente assim”, explica o jornalista. Coelho considera que esta autonomia é mal vista aos olhos dos seus colegas e que chega mesmo a ser alvo de invejas: “sei que vai havendo tentativas, não tanto da direção, mas dos meus colegas, para que este espaço-me seja retirado, mas enquanto não o for, eu continuarei a ocupá-lo e a fazer o que sempre faço. Há pessoas que são simplesmente invejosas”.
Pedro Coelho atualmente também é investigador e professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Nova no departamento de Ciências de Comunicação. Só consegue gerir as duas profissões devido a esta liberdade que conquistou hoje na SIC, que lhe permite ser “dono do seu tempo”. Pedro Coelho considera a profissão de docente uma maneira de passar valor e também uma maneira de participar na reconstrução da academia. No entanto, vê a profissão de jornalista e de académico como complementares: “não sou pedreiro de manhã e jornalista à tarde, sou no fundo, a mesma coisa. Trabalho academicamente as problemáticas que me suscitam dúvida no dia a dia na área do jornalismo. Levo a sério tanto uma coisa como a outra. Já não vejo a minha vida profissional sem o ensino, que tem também uma componente de investigação. Acho que sou hoje um melhor jornalista porque estudo academicamente as matérias com qual me tenho que confrontar no meu trabalho de repórter. Não existem fronteiras entre um e o outro, não existem mesmo”.
Além disso, Pedro Coelho gosta de dar aulas e sentir que teve um papel no percurso dos seus alunos, que o surpreendem todos os anos com as peças que fazem. “Hoje estava na aula e fiquei surpreendido por uma reportagem de uma aluna, que estava extraordinariamente bem feita. Era uma reportagem radiofónico sobre uma criança guineense com uma doença grave. Eu gosto de ver o meu trabalho posto em prática, o trabalho é dela, mas eu sinto que algumas coisas que ela tem naquele trabalho são o resultado do processo de ensino.” Pedro Coelho admite que não é raro encontrar-se com antigos alunos e perceber que estes ainda carregam consigo os conhecimentos que este lhes deu. “E é por isso que dar aulas me dá gozo, não pelo dinheiro que ganho, mas, porque estou a contribuir para a formação destas pessoas. Contribuo diretamente, em certa parte, para a construção da personalidade jornalística daquela pessoa.”
“Ele é uma pessoa extremamente calma e serena, e tem os valores certos, tem a atitude certa com os alunos e tem o empenho certo. Se todos os professores fossem assim seria espetacular, e é esse o contributo que dá como pessoa”, explica Dora Santos, professora do departamento de Ciências de Comunicação na Nova FCSH e parte da direção alargada da faculdade. Trabalhou com Pedro Coelho em diversos projetos com os alunos como Repórteres em Construção e Especial Afeganistão. “É um professor que eu admiro muito porque ele concilia a muita experiência que já tem na televisão e na rádio com o saber fazer na academia. Além disso, a experiência que tem na SIC permite que consiga envolver os alunos em diversos projetos e isso é uma mais-valia para os alunos, para o departamento de Comunicação e para a faculdade.”
Nos raros momentos em que Pedro não está na faculdade ou a trabalhar na sua próxima grande reportagem, este pode ser encontrado em longas conversas com os seus dois filhos rapazes e a mulher, também jornalista, à mesa de jantar, de preferência acompanhado por um bom vinho. Ou então poderão encontrá-lo debruçado sobre o seu piano, instrumento que toca desde os 12 anos e que nunca deixou de adorar. Admira os pais não só por lhe terem pago aulas de piano até ele ter 18 anos, mas também por lhe terem comprado o instrumento para ele poder praticar em casa, coisa que nos anos 80 era raro acontecer. Pedro confessa mesmo que até teria gostado de ter sido um pianista, mas sabe que “não estudou o suficiente para isso”. Um dos outros amores do Pedro é a leitura, mas admite que no quotidiano apenas tem tempo para pegar nos livros quando está na cama prestes a adormecer. As suas escolhas vão de livros de ficção de um dos seus autores favoritos: Gabriel Garcia Marquez, Isabel Ferrante, Mario Vargas Llosa, etc; a textos académicos, úteis às suas profissões. No entanto, Pedro confessa que um dia perfeito para ele terá sempre que envolver trabalho, precisa de agitação na sua vida e mais do que isso sente que o jornalismo é a sua vocação de qual nunca se quer reformar, aquilo que o tornou aquilo que é hoje.
“Acho que, acima de tudo, o que o jornalismo nos dá é mundo. Eu fiz coisas e eu vi coisas que jamais teria feito ou visto se não tivesse a profissão que tenho. No dia a dia estou com todos os pontos no espetro de pessoas, é um pouco a reprodução da loja do meu pai. Eu sinto que estou preparado para as mais diversas situações sociais, mesmos as mais extremas, devido à bagagem e ao conhecimento que eu fui recolhendo como jornalista. Esta profissão tem esta vantagem quando nós a levamos a sério, apreendemos o mundo de uma forma muito mais interna, o mundo não nos é estranho. O jornalismo obrigou-me a não ser um tipo que se prenda a ideias feitas ou a ideias extremas.”
É nesta loja que Pedro Coelho sente que deve estar, mesmo que admita que o sucesso na televisão é extremamente efémero, apenas dura uns dias. Por isso medo o sucesso com um nível mais pessoal: sente que consegue alcançar sucesso quando cumpre os objetivos que definiu para ele mesmo. No entanto, Pedro não consegue ter a mesma atitude perante a efemeridade da vida: “Penso na morte porque me confronto com ela muitas vezes: seja em situações familiares, infelizmente perdi algumas pessoas importantes para mim, seja no meu trabalho. É óbvio que a morte me perturba sobretudo porque é extremamente cobarde, por vezes leva-nos quando, de facto, nós não queremos ir, e leva-nos de foguetão, quando nós não estamos à espera dela. Não vivo obcecado com a ideia da morte, mas é uma coisa que me perturba”. Mas quando olha para esta incerteza da vida de uma coisa têm a certeza: quando já não estiver cá quer ser relembrado “como um jornalista que se preocupou”. «Mais do que isso quer deixar um legado para os meus filhos. Quero que eles olhem para mim como alguém que andou a fazer o melhor que podia enquanto aqui andou, alguém que trabalhou para que o mundo fosse um bocadinho melhor. Quero que pensem: “O meu pai não andou a contribuir para que o mundo seja pior, pelo contrário”.»