José Álvaro Morais e a lenda do cinema português
Marcámos presença na exibição do filme Silêncios do Olhar, a mais recente obra de José Nascimento. Descrito como uma obra documental sobre a vida e obra de José Álvaro Morais (falecido em 2004), este filme foi muito mais do que isso, foi uma homenagem a todo o cinema português sob a forma de uma epopeia que foi a obra do realizador d’O Bobo.
No final do filme, o realizador José Nascimento subiu ao palco para responder a algumas questões do público. Contou-nos que o seu amigo e colega José Álvaro Morais lhe tinha confessado que caso algum dia existisse um filme sobre ele, gostaria que fosse Nascimento a realizá-lo. Foi, então, o cumprir de uma promessa de longa data e uma homenagem bela que mostrou a marca que apenas um homem teve na vida de todos os cineastas portugueses, dos que o conheceram de perto e com ele trabalharam até aos que nunca com ele se cruzaram, mas que o seu trabalho inspirou.
Este foi um documentário que misturou as imagens de arquivo dos grandes filmes de José Álvaro Morais com testemunhos das pessoas que lhe foram próximas de alguma forma. Nomes como Paula Guedes, Luís Miguel Cintra, Teresa Villaverde, João Botelho e António-Pedro Vasconcelos foram só alguns dos referidos e alguns dos que de uma forma ou de outra prestaram homenagem ao amigo e colega José Álvaro Morais. Foram testemunhos bonitos de pessoas que com ele trabalharam, algumas que ajudou a lançar, outras que ajudou a consolidar na história do cinema português.
As imagens de arquivo dos filmes do realizador são – como quem conhece a obra do mesmo já saberia – um regalo para os olhos. Desde as cenas ritmadas e cenários surrealistas d’O Bobo até à conversa intimista e gestos expressionistas de Ma Femme Chamada Bicho (o documentário sobre a pintora Maria Helena Vieira da Silva), todas as imagens que saíam da mente do realizador através da câmara eram um deleite visual ainda inalcançado por qualquer outro em Portugal.
Claro que, de todos os trabalhos do realizador, O Bobo foi o trabalho que lhe valeu uma maior distinção nacional e internacional. Foi o primeiro filme português a arrecadar o prémio principal de um festival internacional de lista A, arrecadando o Prémio do Júri em Locarno (o mesmo festival onde O Ornitólogo de João Pedro Rodrigues foi distinguido). Na história do cinema português não existe nenhum outro filme como O Bobo. É um filme que explora ao máximo todas as armas da linguagem do cinema seja o cenário, o ritmo da fala, a vestimenta, o conflito, etc, tornando este filme numa aproximação real da arte total, que não se define apenas como filme, mas como algo muito superior a isso mesmo.
Terá sido isto que o teimoso José Álvaro Morais perseguiu toda a sua vida: a elevação do cinema a algo transcendente a todo e qualquer limite que lhe possa ser imposto. No filme, o processo criativo de Morais é descrito como a exploração das 1000 hipóteses que existem para um filme ou uma cena avançar, sendo que será sempre necessário explorar as 999 que não funcionam para encontrar a maneira que resulta. Morais era um perfeccionista incansável e isso levou, entre várias outras coisas, à demora da estreia d’O Bobo devido aos seus arranjos finais de edição (o filme estreou nas salas de cinema português 4 anos após sair glorioso do Festival de Locarno). Mas não serão todos os génios teimosos e persistentes?
Silêncios do Olhar apresentou-se como um documentário que não foi feito para ninguém em especial, mas que se revelou muito querido para o seu realizador e quando no cinema algo se faz com amor e com este tipo de dedicação e verdade, esse sentimento acaba sempre por transpirar para o público que saiu da sala de cinema do São Jorge com um sorriso imenso na cara, como se se tivesse cruzado com um velho amigo que não via há muito tempo. José Álvaro Morais ficou também nosso velho amigo. José Nascimento assim o quis. Foi o representar dócil e apaixonado de uma pessoa que transcendeu e revolucionou a arte que praticava, deixando boas memórias para os seus durante o caminho.