José Lopes, o actor que morreu a céu aberto. Ou a tragédia da cultura em Portugal
Um ator foi encontrado sem vida dentro de uma tenda. Vivia numa situação dramática. Não tinha dinheiro para comer, deixara de poder pagar uma casa, os convites para papéis no teatro ou no cinema começaram por escassear e depois deixaram de surgir. Deixou de contar.
Chamava-se José Lopes, tinha 61 anos. Algumas pessoas que o conheciam estão a pedir dinheiro aos que com ele em algum momento privaram, dinheiro para ajudar a pagar o funeral. O seu corpo estava a ser velado numa Igreja de Lisboa. O funeral foi hoje no Cemitério da Ajuda.
Não está em causa a qualidade do trabalho de José Lopes. Não sei se era um ator extraordinário ou medíocre. O que está em causa é muito mais fundo. Mais do que a morte de um homem que se deixou cair na mais miserável das situações, o que é terrível é o sinal do que verdadeiramente vale um artista.
Não existe para atores e atrizes, músicos, gente do cinema, da pintura, escultura, escritores e guionistas, não existe (dizia) qualquer tipo de proteção. Vivem em função de um convite para a próxima peça. Uma peça que depende do subsídio que não se sabe se chega. Vivem na expetativa de um contrato, de uma chamada, de uma migalha. Da mesma maneira que os escritores para sobreviver escrevem o que for preciso, aceitam encomendas e convites para falar em tertúlias, conferências e ciclos literários a troco de nada.
Ainda há uns dias a Rita Ferro insurgiu-se contra a organização de um festival literário. De repente, eu e ela, percebemos que no mesmo evento, no dia a seguir, seria feito em direto um programa da TVI com Ricardo Araújo Pereira, Pedro Mexia e João Miguel Tavares. A organização pagara milhares de euros para os ter. E a nós, que abríamos o festival, pagavam-nos um jantar.
Eu não preciso da escrita para viver. Não vivo dos meus livros. Vou aos lugares porque me apetece ir, por gostar de estar com os leitores de agora e com os leitores que ainda não me leram. Porém, mais uma vez a questão não é essa, como bem sublinhou a Rita Ferro. O problema é a forma como os artistas são vistos. A maneira como são tratados. No grau mais baixo da escala.
José Lopes morreu dentro de uma tenda imunda. Ninguém lhe dava trabalho e não teve como sobreviver. Há uns trinta anos aconteceu o mesmo ao meu pai. Quando a pessoa com quem trabalhou anos e anos soube que tinha SIDA desamparou-o. Deixou-o ficar por sua contra e risco, que fosse morrer longe. O meu pai deixou de poder pagar as contas, de poder pagar os comprimidos, de poder ter uma vida digna. Sem Manuel Faria e Tozé Brito, que todos os meses durante vários anos lhe depositaram dinheiro na conta, e sem a enfermeira Ana Campos Reis, inexcedível na Santa Casa da Misericórdia, não sei o que teria sido.
Hoje foi o funeral de um homem. Ninguém se lembrará dele daqui a um mês. Mas a sua morte simboliza a forma como os poderes vêem a cultura e os artistas. São bons enquanto duram. E quando deixam de durar são descartáveis e acabam, quando têm muita sorte, na Casa do Artista. Ou acabam como o Rui de Carvalho a ter de, com mais de 80 anos, de trabalhar porque a reforma não chega. Ou como o José Lopes, ator de teatro e de cinema, um homem que no papel de si próprio soube representar a tragédia da cultura portuguesa.
E a tragédia dos artistas. Uns maluquinhos que por aqui andam a fazer umas coisas sem qualquer importância. Coisas que não produzem riqueza que se veja, umas teatradas, uns livros, uns filmitos de trazer por casa, umas cançonetas. O meu profundo desprezo.