‘Juste la fin du Monde’, a intensa e claustrofóbica nova obra de Xavier Dolan
A nova obra do enfant terrible do cinema Xavier Dolan, é adaptada da obra do dramaturgo francês Jean-Luc Lagarce. O realizador descreve “Juste la fin du monde” como “my first as a man”. Propositadamente “insuportável” e dramática, a maturidade da obra é inquestionável e traz-nos toda a competência do seu elenco de luxo numa família disfuncional. Recebida por um misto de opiniões entre os críticos que a elogiam e que a odeiam, Xavier Dolan é brilhante na forma como nos consegue levar a amá-lo depois de um filme propositadamente incómodo.
Jean-Luc Lagarce viveu até aos 38 anos, altura em que a Sida lhe levou a melhor. Quatro anos mais novo que ele, Louis (Gaspard Ulliel), protagonista deste filme de Dolan, volta a casa passados doze anos para contar à sua família que tem uma doença terminal (a mesma nunca nos é, ainda assim, confirmada) anunciada por narração pelo próprio Louis ao início. É um peso agonizante para nós, espectadores, saber desde o início o fardo que Louis carrega. Se admitir a sua homossexualidade deve ser algo difícil para se dizer à família, o facto de ter uma doença terminal é algo de proporções impensáveis e a pista é dada através da música Home is where it hurts, de Camille, que irrompe em ecrã.
Tendo mantido apenas contacto através de postais superficiais, o que Louis não desconfia é que porventura alguns membros da sua família já saibam da razão que o traz de volta passado tanto tempo. Talvez por já o saberem, ou porque não querem que ele o confirme, porque aí tudo se torna realmente verdade, a sua família vai fazer os possíveis para que ele não tenha a hipótese de o dizer. Que mais poderia significar um regresso a casa passado tanto tempo senão para anunciar algo grave?
Na chegada à sua terra natal, no lado de fora do táxi onde Louis é transportado, deparamo-nos com um placard a dizer “Besoin de parler?”, como se de um sinal de boas-vindas para o que se aproxima se tratasse. É justamente para isso que ele ali volta passado tanto tempo, para falar, anunciar a sua morte. Mas será que é preciso dizê-lo com todas as palavras? Ou estará, tacitamente, tudo dito pelo anúncio da sua chegada?
Se em “Laurence Anyways” o início da narrativa se prendia com a necessidade da partilha do protagonista, (“se não te contar, morro!”, refere Laurence no filme de Dolan), em “Juste la fin du Monde“, o anuncio oficial não precisa ser feito. Toda a gente sabe, simplesmente alguns escolhem ignorar a inevitável realidade.
“Não é o fim do Mundo.” Esta era uma passagem de “Laurence Anyways” onde Laurence se assumia como transsexual perante a sua namorada à qual a mesma lhe respondia desta forma. Acontecesse o que acontecesse a partir daí, para Laurence este não seria o fim do Mundo, apenas o início de uma nova vida, uma que ele já queria viver há mais tempo. O mesmo não se pode dizer sobre Louis. O fardo que transporta e o seu desfecho são, de facto, o fim do Mundo. Também por isso, há uma inevitabilidade do desenrolar que torna esta a obra mais adulta do realizador franco-canadiense.
A câmara e fotografia têm neste último filme de Dolan um papel essencial na história. Contrastando com o uso de uma câmara dinâmica que captava cores cheias de vida como o amarelo, azul, laranja e vermelho em ecrã, funcionando como transportadoras de sensações nessas obras anteriores, em “Juste la fin du monde” tal já não acontece. Além de um permanente cinzento de um domingo chuvoso, o filme tem, talvez por se tratar da adaptação de uma peça, o constante foco nos seus personagens.
Na cara, nos olhos, na boca, neste seu último filme há uma ambiance claustrofóbica e uma proximidade quase intrusiva de uma câmara que não quer deixar escapar qualquer esgar porque o filme é feito do seu subtexto, daquilo que não nos é explicitamente dito. A tour de force da obra de Dolan não está nas incendiadas discussões (maioritariamente causadas por Antoine, interpretado por Vincent Cassel), mas sim no que nos dizem as expressões. E é aí que os actores revelam toda a sua categoria.
Por o filme exigir o que não é dito, necessitava de um elenco onde só podiam estar nomes de primeira água como Vincent Cassel, Marion Cotillard, Léa Seydoux, Nathalie Baye e claro, Gaspard Ulliel.
É de resto Vincent Cassel que proporciona alguns dos melhores momentos no filme. Muitas das vezes em discussão acesa com a sua compreensiva, mas ansiosa esposa Catherine, o irmão de Louis é a certos momentos um canastrão insensível que só no último terço de filme é compreendido por nós. A forma como reprova as conversas de ocasião e como estas lhe custam. A sua intolerância tem uma razão de ser. Antoine parece ser dos únicos a saber o que Louis lhes quer transmitir (uma pista sobre o seu antigo namorado é reveladora de que pelo menos sabe da sua homossexualidade). É então, ele quem mais sofre, enquanto Catherine (a brilhante Marion) tenta meter conversa para que Louis se sinta mais à vontade. Suzanne (Léa Seydoux), a irmã mais nova tenta recuperar um pouco dos anos perdidos sem a presença do irmão Louis, sem saber o que se passa à sua volta, um facto que a deixa frustrada. A presença de Louis é quase estranha. Todos estão felizes de o ver, mas ninguém o quer ali, e esse sentimento de pouco à vontade é soberbamente transmitido por Gaspard Ulliel.
Os poucos momentos de descompressão num filme deliberadamente intenso vêm associados à música como por exemplo num dos poucos momentos de comunhão familiar ao som de Dragostea Din Tei (só Xavier Dolan conseguiria tornar isto num momento inesquecível) ou um mais introspectivo proporcionado por Grimes (Genesis), a I Miss You dos Blink 182 ou a Natural Blues dos Moby. Um uso sublime de música sobejamente conhecida que nos imerge em ecrã fazendo com que seja também ela uma das principais intervenientes do filme (como já havia feito com a inesquecível cena de “Mommy” com a Wonderwall dos Oasis).
É já numa das cenas finais que há finalmente uma libertação de emoções que estiveram em ebulição durante quase hora e meia. Capaz de conquistar até os mais cépticos em relação a todo o filme, toda a sequência final é mais uma vez algo para recordar futuramente e ficar a marinar dentro de nós. Tal como fez no final de “Mommy“, apesar dos seus 27 tenros anos o realizador orquestra como poucos aqueles finais que nos desarmam completamente, apertando-nos o peito. E não, não é problema cardíaco, é Xavier Dolan a desconcertar-nos da melhor forma. Um daqueles apertos prazerosos. Mais uma “pedrada no charco” por parte do realizador num tema que lhe é tão próximo.