“Krabat – O Moinho do Feiticeiro”, de Otfried Preußler: uma maravilhosa história para todas as idades
Com uma história enraizada na literatura tradicional alemã, Otfried Preußler (1923-2013) tem em “Krabat – O moinho do feiticeiro” (Sextante) um livro para todas as idades.
“Krabat – O Moinho do Feiticeiro” tem como contexto a Grande Guerra do Norte, passada no período de 1700 a 1721, entre coligação formada pelo Reino da Dinamarca, Noruega, Saxónia-Polónia e o Czarado da Rússia contra o Império Sueco. É neste ambiente que Otfried Preußler nos conta a história de libertação de Krabat, aprendiz de moleiro, da maldição imposta pelo Mestre. O desenvolvimento do enredo é marcado pelas estações e pela liturgia. O profano e o sagrado entrecruzam-se, assumindo, em cada um dos elementos, novos matizes. O leitor reconhece os símbolos, mas percebe que algo está diferente, alterado, por esta nova verdade ficcionada. A Páscoa reforça o domínio do Moleiro em detrimento de uma hipotética redenção. Os doze corvos/aprendizes podem representar os 12 meses do ano; quando um morre, a azenha pára e só recomeça quando entra um novo aprendiz (como aconteceu com a entrada de Krabat). A numerologia, tal qual a semântica das cores, é constante. Segundo se pode ler na introdução de Gabriela Fragoso, são significativos “o vermelho, o branco e, acima de tudo, o preto. Cor dos corvos, cor da azenha e da aldeia que lhe fica perto (Schwarzkollm), cor do Koraktor e das vestes do mestre moleiro e, mais importante ainda, cor da morte que aparece simbolizada no sinistro compadre que visita a azenha nas noites de lua nova e que é a única entidade à qual o mestre deve obediência”.
O substrato moral (duelo travado entre o Bem e o Mal; a amizade entre aprendizes) é explorado com recurso a elementos oníricos e a transmorfos, que rompem com limitações impostas pelo realismo. “Os Contos da infância e do Lar”, dos irmãos Grimm, ou os “Contos” de Hans Christian Andersen reverberam na prosa de Otfried Preußler. Ou não fosse Krabat um constante diálogo com o folclore europeu e respectivos arquétipos.
Sem pejoração, recorremo-nos das palavras de Jacob Grimm [ em circular enviada a quatro centenas de destinatários na Alemanha]:
“Muito do que se afigura moderno é amiúde meramente modernizado e retém a sua identidade básica sob a superfície”
É nos contos, herdados por diferentes gerações, que Preußler estabelece as fundações de “Krabat – o moinho do feiticeiro”. E isso é dizer muito quando sabemos que um conto popular apreende muitas características psicológicas de um povo. É nas lendas em prosa e em verso e é nos contos cómicos de trapaceiros e facécias que se encontram as origens da poesia, da história e da língua.
A relação entre o Mestre-moleiro e o Compadre é um eco da relação entre Fausto e Mefistófeles. Nesta lenda popular alemã, Dr. Fausto faz um pacto com o demónio de forma a ter conhecimento da magia satânica que o dota de poder sobre os outros. Em “Krabat”, o Mestre-moleiro mantém a imortalidade e o conhecimento da magia negra desde que, todos os anos, sacrifique um aprendiz. A escolha recai sobre o discípulo que aprende mais das récitas do Koraktor, Bíblia da magia negra. Demasiado próximo do conhecimento do Mestre, ele é sacrificado. Os discípulos aprendem do Koraktor, pela voz do Mestre, para melhor produzirem. É essa magia que permite o trabalho árduo, a produção prolifica, sem as dores nem o cansaço. Mas cada bênção tem um custo.
Só há uma maneira de se libertarem: através de o amor de uma rapariga que haverá de conhecer o amado, mesmo que na sua figura de corvo entre corvos. Outros tentaram sem sucesso. Morreram o corvo e a amada.
Até esse reconhecimento, o Moleiro é dono do aprendiz. É uma relação de domínio (obediência e submissão) só quebrada por um “feitiço” lançado por uma mulher. E com um preço a pagar. A partir do momento em que a libertação acontece, o Moleiro morre e todo o conhecimento transmitido sobre a magia desaparece. Desvanecem a causa e o efeito.
O mestre tenta destruir o seu discípulo, tanto psicológica como fisicamente. Rouba-lhes a esperança de fuga e libertação. A dependência diminui-lhes a individualidade. Só através da traição, o discípulo arruína o seu mestre. Isso acontece na ficção (Wagner triunfa sobre Fausto) como na própria realidade (Heidegger humilha Husserl). Nesta relação desequilibrada, a osmose é inalcançável e a dialética é suplantada pela hierarquia e dependência.
Otfried Preußler conjuga um conjunto de arquétipos, folclore europeu, semiótica cristã e pagã num texto dotado de várias camadas interpretativas. A história de Krabat valeu ao autor vários prémios atribuídos a literatura juvenil (“Prémio de Literatura Juvenil Alemã”, e “Prémio Europeu do Livro Juvenil, da Universidade de Pádua”) mas é, a bem dizer, uma história para todas as idades.