‘La Casa de Papel’: um fenómeno difícil de solucionar

por Inês Bom,    13 Março, 2018
‘La Casa de Papel’: um fenómeno difícil de solucionar
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Mais uma aposta sólida da Netflix, desta vez com a trama espanhola de Álex Pina, que conquistou o seu lugar aos olhos do público de forma inabalável. Narrada por Tóquio (Úrsula Corberó), uma das assaltantes do grupo que invade a Casa da Moeda de Espanha, a história desenrola-se tanto no presente, durante o assalto e sequestro, como através de flashbacks que remontam aos cinco meses de preparação do assalto e período durante o qual os diferentes membros do grupo vão criando alguns laços, tanto entre eles, como com o espectador.

Não nos vamos alongar em sinopses detalhadas dos episódios, até porque a série explora vários temas já antes vistos. As próprias variantes do assalto não são algo que possamos determinar como inovador. No entanto, por alguma razão codificada, não se consegue conter o entusiasmo e a sede de saber o que se segue, de episódio para episódio. Há falhas manifestas, lugares comuns e algumas performances mais frágeis. Mas a série é um sucesso. E é exactamente esse fenómeno que merece as nossas considerações.

Partindo de um ponto de vista justo e objectivo, há que sublinhar algumas lacunas. Como já foi referido, a história padece de alguns chamados clichés. Tanto nos sentimos envolvidos por uma atmosfera requintada saída de “Reservois Dogs”, como rapidamente saltamos para uma série de eventos pouco credíveis e outcomes forçados, como uma versão pior ensaiada de “Missão Impossível”. O “Professor” (Álvaro Morte), cérebro de toda a operação, comandando o assalto do lado de fora – sendo por isso uma personagem com um impacto fulcral na trama – apresenta-se perante nós com alguma falta de carisma e pouco convivente na persona que pretende de forma evidente adoptar. A dinâmica construída entre este e a inspectora central do caso, Raquel Murillo (Itziar Ituño), no meio das inúmeras peripécias que compõem uma serie policial, acaba por ser dos aspectos mais irrealistas e mal concebidos de toda a trama.

Dito isto urge explicar, ou deslindar, a forma como a série nos convenceu a todos. O primeiro ponto a destacar é, sem sombra de dúvida, a dicotomia das personagens. Não estando necessariamente agrupados entre bons ou maus, heróis ou vilões, são construções complexas que se afastam do politicamente correto e que em si mesmas encerram as vulnerabilidades próprias do ser (e ser-se) humano. Ao longo da temporada os nossos favoritismos e impressões vão oscilando relativamente a cada personagem, ao mesmo tempo que estas estremecem perante as suas próprias limitações. Ao contrário do que estamos habituados a receber, como criações imperfeitas e realistas que são vão revelando diversas, e por vezes contraditórias, facetas; tanto ao longo do assalto, como durante os flashbacks. É fácil criar-se empatia perante a indefensibilidade do ser humano e relacionarmo-nos com as suas fragilidades.

O fio condutor da acção é outro aspecto cativante do programa. Apesar do que foi referido anteriormente, sobre algumas das nuances do assalto não serem exatamente revolucionárias, a verdade é que estão recheadas de reviravoltas inesperadas, estratégias ousadas e uma tensão latente que vai escalando até ao ponto de rutura. Por outras palavras: é emocionante, não se pode contestar. Paralelo a isto, podemos desfrutar de planos visualmente cativantes, através de uma fotografia bem enquadrada (da autoria de Migue Amoedo) e um hábil uso da cor, como os contrastes entre os cinzentos austeros do edifício e as vestimentas garridas e máscaras alegóricas dos assaltantes.

Por fim, foi reconfortante constatar que a série não caiu no erro de atribuir a todas as personagens motivações pessoais justificativas de realizarem o assalto. Apenas alguns backgrounds nos são relatados (como o de Tóquio, Nairobi, Denver ou o próprio Professor). Não somos mergulhados num oceano de tragédias passadas, injustiças sofridas e vinganças merecidas. Isto porque o cerne da questão, e a crítica subjacente à série, acaba por se prender com o simbolismo do ato em si; um ato de revolta daqueles que se insurgem perante uma sociedade corrompida pela ganância, sem nunca contemplar aqueles que ficam de fora da engrenagem. E que veem neste assalto (restringido por regras inquebráveis, como não fazer vítimas e não roubar nada a outrem) a única forma de subsistirem no mundo. Não é, no entanto, como soa: uma atitude heróica contra o sistema, pois os danos colaterais são sabiamente retratados. Porém, é o suficiente para pôr à prova as nossas convicções, noções elementares de certo e errado que tínhamos como asseguradas e que agora nos fraquejam.

A “Casa de Papel” é, por tudo o que foi dito, um daqueles casos difíceis de decifrar. Se por um lado não conseguimos fechar totalmente os olhos a algumas falhas latentes, por outro sentimos uma lufada de ar fresco que nos faz ansiar por mais. E se o propósito daquilo que vemos, comemos, bebemos e experienciamos é, em parte, sentirmos alguma satisfação pessoal, a série cumpriu com a sua finalidade ao inquietar-nos ao longo de duas sólidas temporadas

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