‘La mort de Louis XIV’, Albert Serra filmou um retrato de Rembrandt sobre a mortalidade
Depois de se debruçar sobre figuras como Don Quixote ou Drácula em obras anteriores, o realizador catalão trabalha agora sob o mesmo factor tempo (enquanto decadência do ser e da sua figura) e a mesma delicadeza e minimalismo sobre Louis XIV, rei que governou França durante 72 anos. De majestosa e altiva peruca real, o mote é dado por um sóbrio “vamos” de Jean- Pierre Léaud, actor que o interpreta, nos jardins reais, onde nunca mais voltaremos.
Em comum entre Louis XIV e Jean-Pierre Léaud existe o enorme reinado de cada um. Louis XIV reinou França entre 1643 e 1715; Jean-Pierre Léaud é um dos rostos mais conhecidos da História do Cinema tendo-se dado a conhecer ao Mundo logo aos 14 anos através da sua personagem Antoine Doinel em Les Quatre Cents Coups de François Truffaut (recordemos o icónico último plano do filme onde Doinel encara a câmara), que nos permitiu ainda acompanhar o crescimento do personagem/actor ao longo dos anos seguintes com Antoine et Colette (1962), Baisers Volés (1968), Domicile Conjugal (1970) e L’Amour en Fuite (1979) (muito antes de Boyhood, portanto). Depois de nascer, crescer e viver, Léaud completa agora o ciclo da vida com a morte de uma personagem sua.
Curioso será também pensarmos sobre o facto de Louis XIV, o Rei Sol, um dos mais reconhecidos e poderosos reis de França, tendo consolidado a monarquia absoluta e a centralização dos poderes na sua pessoa, ser agora interpretado por Léaud, cara reconhecida da New Wave francesa, movimento cinematográfico representativo das preocupações sociais e políticas da sua altura (finais dos anos 50 até aos anos 60).
tableau vivant – expressão imortalizada no Cinema através do mestre Luís Buñuel que em Viridiana, recorrendo a um grupo de mendigos representou a “A Última Ceia” de Leonardo da Vinci, valendo-lhe obviamente fortes críticas por parte da Igreja – de uma qualquer obra de Rembrandt, pintor e gravador holandês mais conhecido pelos seus retratos e ilustrações de cenas bíblicas.
Desde a cena inicial que não mais estaremos no exterior, confinando-nos o realizador aos aposentos reais onde, no quarto, a saúde de Louis XIV se vai debilitando a olhos vistos – e onde Léaud a capta de forma impactante num leito que será de morte. O rei que gastou balúrdios em obras desnecessárias e megalómanas vê-se assim reduzido ao seu quarto e à condescendência dos que o rodeiam. Os seus traços de excentricidade não se perdem todavia. A sua peruca, gigante, sempre composta, fica consigo. A água, essa, deve ser servida em copo de cristal, ainda que a secura da sua boca o faça gritar de dor e desconforto. As jovens da corte, pedindo que se junte a elas no baile, são satisfeitas com o esforço do retirar do seu chapéu, que altivamente pede que o seu criado lhe leve. Um espectáculo para o exterior, exterior à sua cama, onde a pouco e pouco perece. O exterior que fica na sua redoma e excentricidade nobre e que nega ou quer negar que o seu rei está a sucumbir a uma doença, maior que a sua grandeza real.
Rico em detalhes no cenário em causa, parece por vezes tratar-se de uma peça de teatro o que vemos em ecrã, mas cujo efeito total se perderia na impossibilidade dos close-ups que vamos tendo ao longo das quase duas horas de filme, onde os rostos sóbrios, ora desacreditando a situação ora apreensivos do austero Fagón (Patrick d’Assumção), o médico, incapaz de fazer um prognóstico e Blouin (Marc Susini), o principal criado e confidente do rei, ambos interpretados de forma fabulosa e que só rostos experientes conseguiriam levar à câmara.
No final, à frase emblemática “le roi est mort” seguir-se-á uma consequente e visceral dissecação dos “porquês”. Sempre com a mesma simplicidade de processos, de detalhes ricos, humanos (um suspiro ou um esgar de dor, ou um acenar de cabeça, ou um olhar vazio) ou materiais (a luz das velas, as perucas, os bordados, o design, a roupa). Tudo isto rodeado de um silêncio (como se também ele fosse personagem nesta obra), daqueles calmos, que antecedem a morte, daqueles que existem quando nada mais há a dizer ou a fazer por se saber a inevitabilidade do que se sucederá. Tal como o Homem, também a Medicina, por consequência, estará em constante estudo e evolução. “Da próxima faremos melhor”, e o fim chega (antes, ao encerrar a vida, e depois, neste fantástico filme). Curioso é que na morte está a interpretação de uma vida: a de Jean-Pierre Léaud.
La mort de Louis XIV tem a co-produção da Rosa Filmes e foi agora lançado em DVD pela Alambique.