‘Lazzaro felice’ é uma experiência humanitária
“Lazzaro felice”, ou em português “Feliz como Lázaro”, estreou na última edição de Cannes e chegou, o mês passado, aos cinemas portugueses. Tendo levado consigo, do referido festival, o Prémio para Melhor Argumento, a sua exibição, agora no nosso país, vem comprovar a pertinência desta atribuição.
A inquietação marca a cena inicial: a algazarra domina a casa de uma família de camponeses; fora desta, à janela, homens tocam gaita-de-foles e cantam, num momento de serenata. A partir daqui, são-nos apresentadas as relações familiares destes trabalhadores e Lázaro, personagem que nomeia o filme e que se encontra, por sua vez, fora deste emaranhado de famílias, sendo, apenas, neto da senhora de mais idade que, por falta de mobilidade, transporta nos braços para todo o lado.
É sob o cenário de Itália que se desenrola a acção, mas esta, fugindo ao panorama mais vulgar, é a Itália rural – da natureza, do campo, da vegetação –, e, mesmo quando somos transportados para a cidade, é a sua zona pobre que ficamos a conhecer. Explorados pela Marquesa de Luna, os camponeses habitam a pequena vila de Inviolata. Totalmente crentes da normalidade da exploração de que sofrem, estão longe de ter uma vida regida por princípios modernos; ainda que protestem contra De Luna, acreditam não existir vida fora do lugar que habitam e, muito menos, reconhecem que o modo quase feudal em que vivem, há muito terminou. Lázaro, entre toda a azáfama do trabalho agrícola, apresenta-se como é descrito: feliz, dotado de uma bondade que lhe permite ser o socorro à realização de todas as tarefas.
Em contraste com a vida humilde dos camponeses, a família De Luna rege-se pelo luxo, sendo conhecida pela bem-sucedida produção de tabaco. A reviravolta da narrativa chega-nos quando Tancredi, o filho da Marquesa, resolve fingir o próprio rapto e refugiar-se no abrigo de Lázaro, fazendo deste seu cúmplice. O que se segue é o desenrolar de uma relação com dupla face – tanto bonita e sincera, como revoltante, para o espectador – entre Lázaro e o rapaz De Luna, e um avançar do tempo que troca as voltas à acção.
“Feliz como Lázaro” é uma viagem num tempo desconhecido – se tanto acreditamos que não se passa neste século, a existência de mp3 e telemóveis nega esta ideia –, numa Itália invulgar para quem habita fora dela, através de uma história que, constantemente, sofre impulsos rápidos de total viragem. É essa forma de avançar e paralisar o tempo, que a realizadora e argumentista, Alice Rohrwacher, tão bem reproduziu durante o filme e é, exactamente, a imprevisibilidade do argumento que nos faz seguir com especial atenção a acção.
A crítica feita à exploração dos trabalhadores, levada ao extremo pela ideia que estes se encontram isolados e, consequentemente, desprovidos de qualquer consciência da realidade, atinge o seu auge no diálogo da Marquesa de Luna com o seu filho, onde esta afirma a normalização da situação imposta aos camponeses, com a justificação de que ela os explora da mesma forma que eles exploram alguém. Na verdade, Lázaro é o alvo final desta cadeia: não reclama, não reage, não ordena – apenas cumpre ordens. O tempo nem sequer passa por ele, levando o espectador a questionar-se se este será uma espécie de Deus que comprova a ideia da Marquesa, se será um fantasma ou, talvez, uma ilusão que acaba por viver dentro de todos, funcionando como uma espécie de reconforto moral.
Marcadamente Neorrealista, este é um filme que expõe as suas ideias com ironia, espelhada na personagem de Tancredi, e crueza, enfatizando a natureza humana egoísta e débil (notemos a lágrima de Lázaro a poucos minutos do final). “Feliz como Lázaro” é uma experiência humanitária, com reflexos sociais e objectivos transpostos a olho nu que, com toda a simplicidade que o caracteriza, funciona de forma excepcional.