‘Leto’ um retrato do que na verdade não aconteceu na Rússia

por Paulo Portugal,    13 Maio, 2018
‘Leto’ um retrato do que na verdade não aconteceu na Rússia

Leto (Verão) representa a luta contra a opressão do inconformado Kirill Serebrennikov, o cineasta russo que permanece ainda em prisão domiciliária. Tal como o iraniano Jafar Pahani, que também não poderá vir a Cannes defender o seu filme, Three Faces. Leto seria um grande filme, se não se perdesse numa nostalgia punk demasiado vincada e, por vezes, pouco convincente.

No entanto, a imprensa recebeu muito bem o filme de Kirill Serebrennikov, num misto de homenagem e de reconhecimento pelo seu trabalho. De referir que a prisão de Kirill sucedeu precisamente após a rodagem deste filme, no dia 23 de Agosto, em S. Petersburgo. O que fez com que algumas cenas acabassem por ser filmadas por uma segunda equipa, como confirmou o seu produtor na conferência de imprensa a seguir à sessão, apesar de Kirill ainda ter conseguido terminar a montagem em casa num elegante preto e branco, embora desnecessário. Contudo, será quando vemos alguns excertos a cor que nos aproximamos mais da época que o filme retrata tempo.

Kirill não está, mas o festival tentou que o realizador estivesse presente, embora um comentário de Vladimir Putin referia que teria muito gosto, embora alertasse para o facto de que na Rússia o departamento de justiça funciona com liberdade

Como se percebe, o filme soa como um novo grito de liberdade. Algo que já se sentira no anterior O Estudante, há dois anos exibido em competição em Cannes. Tal como esse estudante decide questionar a moralidade dos adultos, também aqui se desenha o retrato da mesma aspiração, no caso, o movimento underground na Rússia, a pedir uma Perestroika que só se concretizaria no final da década de 80, embora homenageando aqueles que abriram caminho. Em particular em Viktor Tsoi, considerado uma lenda no seu país, recordando o seu trabalho em conjunto com o seu ídolo Mike, uma espécie de variante de Liam Gallagher, dos Oasis, e a sua mulher, com quem se sugere uma aproximação romântica a Jules e Jim.

Talvez por tudo isso se perdoe um pouco a essa vontade imensa de beber a novidade do Ocidente que cola ao produto final um tom demasiado vincado, talvez menos realista, ou algures entre um ideal e a realidade, ainda com um excessivo name droping demasiado referencial. Bowie, Marc Bolan, Lou Reed, Richard Hell, a lista continua… A explicação poderá estar na exploração de um look mais new wave, em particular nas cenas musicais que surgem em verdadeiro formato de videoclipe, aliadas a uma animação scratch, colando a esses temas um estilo artístico mais primitivo.

Seja o momento em que numa carruagem de comboio os passageiros se assumem como personagens de um improvisado videoclipe do tema Psycho Killer, dos Talking Heads, ou num autocarro, ao som de Passenger de Iggy Pop. Na realidade, isto não aconteceu. A frase vai-nos sempre recordando isso, como que a abrir um hiato entre a realidade e a repressão política e social da altura.

Na verdade, o mesmo se pode também dizer sobre a presença de Kirill Serebrennikov. Na verdade, o director artístico do Gogol Center em Moscovo, o cineasta, encenador e dramaturgo, não podia ter sido preso. Na verdade, isto não aconteceu.

https://www.youtube.com/watch?v=KlHwIRZLFdc

Artigo escrito por Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt

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