Lisboa Dance Festival: como a música pode encher espaços
Neste fim-de-semana que passou, deu-se a terceira edição do Lisboa Dance Festival. Mais do que se ter passado no Hub Criativo do Beato, o festival habitou o antigo complexo fabril como se fosse a sua casa. Culpe-se o vento que fustigava a zona ribeirinha, obrigando as pessoas a procurar conforto dentro dos diversos espaços; o facto da música electrónica assentar que nem uma luva no ambiente industrial envolvente, ou mesmo o espaço em si, composto por um enrodilhado de corredores pelos quais as pessoas se deslocavam com um à-vontade extraordinário; o que é certo é que, sendo a primeira vez que o festival decorre naquele espaço, parece já um casamento mais que natural.
Talvez por culpa da tempestade atípica que varre o país, o festival esteve menos povoado do que o esperado. Isso trouxe um conforto aos festivaleiros que se predispuseram a ir até à nova zona emergente de Lisboa; mas também alguma desolação ao ver óptimos sets – como os do duo escocês Optimo (estamos cientes da piada fácil) ou da irlandesa Saoirse – demasiado vazios. Consideramos que o festival começa a horas invulgares para quem quer ir sair e ouvir música electrónica, pois ou já esteve ao longo da tarde a fazê-lo (como no Lisb-ON) ou então apenas aparece a altas horas da noite (como em discotecas). O público português parece ter as suas rotinas sabáticas bem definidas, com pouca flexibilidade para as mesmas.
A força motriz do festival foi a londrina NAO, um dos nomes diferenciadores do cartaz (a par dos Paraguaii). O seu concerto atraiu uma boa quantidade de gente até à Fábrica do Pão, que decerto terá ficado satisfeita. O espectáculo começou com quatro canções em piloto automático, nas quais a artista mostrou dinamismo e expôs a sua voz imaculada, mas sem grande efusão. Quando se dirigiu ao público para falar de como tinha adorado a viagem que havia feito por Portugal, assim como do facto do seu nome poder ser lido como “não” no nosso país, a situação mudou. A sua genuinidade veio ao de cima, trazendo consigo as músicas mais interessantes que, curiosamente, eram as menos dançáveis. A sua ‘música de fazer amor’, ancorada em batidas electrónicas limpas, tem garra e clímaces intensos. Já a caminho do final, “Firefly” – colaboração com Mura Masa – foi uma das canções mais celebradas. O seu beat urbano e refrão que clama “just say yes” entrosaram-se no público que se abanava, embevecido com a ginga da cantora. “Bad Blood” acabou o concerto, com a promessa de um regresso rápido a terras lusas e ao público que, tão cedo na sua carreira, já lhe é devoto.
Fora da clara cabeça-de-cartaz, as escolhas foram variadas. O encadeamento de espectáculos parecia contar uma história, e cada pessoa podia construir a sua. No primeiro dia, o mote foi dado pelo techno, cujo epicentro se encontrava na evocativa Pastelaria, na qual Monoloc deu um set intenso, de batidas pesadas e apontamentos melódicos interessantes, com espaço para algum niilismo sónico sob a forma de ruído que, em toda a sua agressividade, parece limpar-nos os ouvidos para mais uma rodada de dança frenética. GPU Panic abriu as hostes com um set que só lucraria com um volume mais elevado, mas que nos deixou com curiosidade relativamente ao português – que editará o seu EP de estreia este ano. A Pastelaria pareceu-nos ser sempre um refúgio mais alternativo, sendo o espaço mais pequeno e contido, de chão preto e branco iluminado pelas luzes néon da banca da Eristoff. No segundo dia, Truncate impressionou com um set de techno de elevadas octanas e pura força, com pouco espaço para floreados ou para respirar. O que importou foi martelar os ouvidos do público, que urrava de entusiasmo a cada mudança de ritmo.
No entanto, não houve sala na qual os artistas utilizassem melhor o espaço do que na Fábrica das Massas. Quando a sala estava a meio-gás no que tocava a público, a música fazia questão de encher o espaço, com um eco que não moía. Aliás, essas brincadeiras sonoras tornaram a experiência especialmente interessante, assim como o fabuloso espectáculo de luzes (transversal a qualquer uma das salas, na verdade). A vibração de um portão de metal adicionava ondas sonoras ao já referido set de Optimo; um apito tocado por um espectador divertidíssimo juntava-se ao afrobaile de DJ Marfox; até aos holofotes rotativos, que pareciam seguir o ritmo dos vários géneros passados pela portuense Mvria, todos detalhes pontuais que deliciavam aqueles que estivessem com especial atenção.
Feito de detalhes foi também o concerto de Nosaj Thing, que fez apagar as luzes da Fábrica do Pão, mantendo apenas uma luz estroboscópica apontada ao público, que disparava flashes desnorteantes, e um laser que desenhava padrões satisfatórios no ar. Não havia coisa mais bela que ver o fumo a dançar com a sua luz. Foi facilmente o set mais imersivo e mais experimental, e ainda assim fez todo o sentido. As linhas de baixo serpenteantes e batidas de produção limpa ocupavam o seu lugar devido, numa organização sónica que é uma prova das suas valências de produtor, e inspiravam o público a mexer-se de forma contida, mas decisiva. O final foi pontuado com “Pink + White”, canção de Frank Ocean ao som da qual o artista abandonou o palco, para gáudio do público. Fora este e o concerto de NAO, a Fábrica do Pão acabou por receber os espectáculos menos interessantes, como os de Xinobi ou Mirror People, que não conseguiram transmitir o entusiasmo conjurado pelas suas canções de estúdio, ou ainda Romare, cujo formato live caiu em saco roto, com batidas demasiado repetitivas e melodias pouco definidas.
Logo à entrada, ficava a sala mais impressionante, a última que mencionaremos neste texto: as Grillas. Com um aspecto de armazém rústico, a sua divisão principal (havia três subespaços ao todo) dividia-se ao meio por arcadas largas que davam personalidade ao espaço. Foi lá que fizemos a viagem dançável do festival, ao som da space disco de Prins Thomas. Os seus ritmos parecem estar em constante crescimento e mutação, mesmo mantendo os tempos semelhantes. Pequenos acrescentos sonoros, como cowbell, palmas ou vozes femininas tornam a sua música mais divertida, colocando-o a meio caminho entre dois pesos pesados da space disco escandinava: Todd Terje e Lindstrøm. Durante estes dois dias, as Grillas tornaram-se numa espécie de Lux fora de Santa Apolónia, com uma programação consistente e com a qualidade que reconhecemos ao espaço icónico da noite lisboeta. Dupplo, numa vertente mais minimal, e os veteranos Octave One foram belos exemplos do melhor que a música electrónica nos pode trazer.
Como não só de música se faz o Lisboa Dance Festival, explorámos ainda a exposição Visceral Monuments, curada por John Romão. As peças de arte contemporânea partilhavam o espaço fenomenal da Central Eléctrica, com os sons de algumas delas a criar uma cacofonia adequada ao título da exposição. Desde a escultura à videoarte, passando pela fotografia, a exposição maioritariamente singrou em dar um palco a camadas menos ouvidas da sociedade, através de representações do movimento queer ou feminista, assim como em criar um monumento ao mesmo. Destacamos a projecção massiva da video-instalação “Levée“, de Boris Charmatz e César Vayssié, cujo pano de fundo era a parede carcomida da Central, numa justaposição brilhante. As talks, que também têm vindo a definir o festival desde a sua incoação, foram tidas em tom coloquial, como se estivéssemos a discutir assuntos tão actuais como o boom do turismo em Lisboa com amigos nossos.
No final, a sensação que fica é de que o festival realmente encontrou a sua casa. Através da renovação e dinamização de espaços outrora abandonados, o Lisboa Dance Festival dá uma nova vida ao Beato, encontrando assim a sua própria vocação. Só falta toda a cidade ficar a par disso, também.