Luz, câmara, ação… estupidez
Reality shows. Termo carregado de estrangeirismo, prática que Portugal importou pelo facto de existir uma espécie de birra infundada em imitar o que fora do “retangulozinho”. O argumento desdobra-se nas premissas “se se faz lá fora, por que não fazer aqui?” e “não podemos ficar sempre na cauda da Europa”. Sinceramente, eu propunha o exercício inverso: porquê fazer aqui se se faz lá fora e porquê não ficar na cauda da Europa só neste parâmetro? Sou um dos alunos maus da turma de 11 milhões e a vontade de alertar o professor para o “copianço” é imensa.
Atenção! Não nego que existam programas desse cariz e com essa finalidade que não sejam realmente bons. Nego, sim, a existência deles em Portugal. No passado domingo, estrearam dois em estações televisivas distintas e concorrentes. “Quem Quer Namorar Com O Agricultor?” e “Big Brother 2020”, na SIC e TVI, respetivamente.
A inquietação começa a formar-se quando associam aquela tirada de Orwell – big brother is watching you – ao programa de entretenimento, isto é, quando a colocam ao nível da poeira que se faz representar nas emissões do Big Brother. Qualquer símile livresco se traduz no mais abjeto. É intelectualmente desonesto – e o termo nunca assentou tão bem – utilizar expressões de uma obra literária universal, obrigatória e distópica e aplicá-las ou alistá-las ao show que, na sua primeira fase de gestação, apresentou um dos mais populares golpes de UFC que a televisão portuguesa conheceu desde a sua formação em 1956.
Pelo que me foi possível compreender, os concorrentes desta última edição estão socialmente isolados em apartamentos distintos nas primeiras duas semanas de emissão: discussões inúteis sobre limpezas, nomeações, flirts e diz-que-disses, em princípio, não acontecerão. A partir desse momento, com a devida realização de testes e a saúde no apogeu, são despejados numa casa comum. E aí, através dos jipes de vários comentadores, serão efetuados passeios pela selva.
O Twitter implodiu de imediato. O assunto subiu a galope para as chamadas trends. Múltiplas reações a uma intervenção de uma concorrente despoletaram a instantaneidade da estupidez, resta saber se propositada ou irrefletida. A dúvida na análise surge aí mesmo: as pessoas que concorrem a um dos papéis principais da telenovela mexicana sem qualquer tipo de conteúdo substancial em cultura trazem, de casa, a inércia mental ou constroem uma personagem farta em ignomínia num curto período de tempo?
Embevecem-me os iluminados admirados com a chuva de ferroadas. Não percebem o porquê. Eu explico ou, pelo menos, tento. Aquando da sintonização, forma-se uma espécie de magnetismo estupidificante que tende a prender o espectador. Normalmente, quem domina a prática do zapping, pensa “vou ver cinco minutos e já mudo de canal”. O primeiro passo em direção ao precipício está dado. Além de tudo isto, a não compreensão do verdadeiro intento continua hirta. Serviço Público? Entretenimento? Desespero? Aparição? Fama? As duas últimas questões pertencem ao domínio da retórica, mas convém perguntar porque existem sempre concorrentes dotados de elevada modéstia.
Eis que acontece algo tipicamente português! Os reality-shows fazem as malas e rumam ao meio rural. E, se provocarmos o monólogo no nosso subconsciente, a incompreensão surge de imediato. O ambiente rural traduz uma tranquilidade bucólica, um conluio entre o Homem e a Natureza, a carga terapêutica que as vivências podem representar na psique, a ausência da azáfama citadina e dos becos mundanos que esta nos oferece e a possibilidade de manter uma distância considerável de mastros da idiotice como “Quem Quer Namorar Com o Agricultor?”
Infelizmente, as características imaculadas ao que tradicionalmente apelidamos de “campo” estão poluídas. O meio rural encontra-se em estado de decomposição e aves necrófagas, da estirpe anterior, debicam-no. E não conjuga, não bate “a cara com a careta”: edificar uma aproximação forçada e forjada – independentemente do contra-argumento – a outra pessoa, sob o pretexto da labuta na atividade do setor primário. Portugal nunca atingiu, outrora, tamanho nível saloio. Alguém, de consciência sã, acredita em tamanha barbaridade? Será crível alguém pretender mudar de estilo de vida e dedicar-se à agricultura ou encontrar o amor no campo? Sim, mas sem câmaras no radar.
As noções de entretenimento flutuam num mar de desapego à televisão. A onda é percetível. E só se afoga quem não souber nadar na estupidez!