Manual de Tratamento da Ansiedade: só metade dos doentes com perturbações têm diagnóstico certo

por Ana Monteiro Fernandes,    23 Setembro, 2022
Manual de Tratamento da Ansiedade: só metade dos doentes com perturbações têm diagnóstico certo
Capa do livro

(As perturbações de ansiedade podem afectar até 33% da população mundial ao longo da vida e, mais especificamente, 16,5% da população portuguesa. Constituem as doenças psiquiátricas mais comuns mas, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), “só metade dos doentes com perturbações de ansiedade estão diagnosticados adequadamente.” Importa, também e fundamentalmente, a consciencialização dos médicos de família, uma vez que são essenciais para a primeira sinalização da doença e para estabelecer a ponte com o corpo médico especializado.)

O “Manual de Tratamento da Ansiedade”, com coordenação de Pedro Morgado — professor Associado de Psiquiatria e Comunicação Clínica da Escola de Medicina da Universidade do Minho, da qual é Vice-Presidente desde 2017; Médico Especialista do Serviço de Psiquiatria do Hospital de Braga, EPE e Investigador do ICVS/3B’s Laboratório Associado — começa logo por referir que “as perturbações de ansiedade são as doenças psiquiátricas mais comuns, podendo afetar ao longo da vida até 33% da população mundial”.

Quanto ao caso português, mais à frente, no mesmo livro surge descrito que “as perturbações de ansiedade são prevalentes, atingindo cerca de 16,5% da população portuguesa.”

Ao longo do tempo, o ser-humano foi tomando uma maior consciência da ansiedade em si, como das perturbações que lhe podem ser adjacentes, tanto pelo maior fluxo de informação, como pelas exigências da vida contemporânea. Também sabemos que abunda a informação não profissionalizada que, muitas vezes, pode estar errada e, por isso mesmo, pode ter consequências perniciosas. Não menos conhecido é o facto das questões do foro mental já gozarem de um maior interesse por parte da população, o que é muito positivo mas, por outro lado, pode levar a um aproveitamento informativo que, muitas vezes, pode conduzir a caminhos menos interessantes.

“Este livro é um guia que orienta o leitor através das estruturas clínicas ansiosas, de forma clara e precisa, com rigor e pertinência, mas sem exageros académicos ou simplificações pretensamente pedagógicas.”

Afirma o Psiquiatra Rui Mota Cardoso no final do prefácio deste livro.

O “Manual de Tratamento da Ansiedade”, por sua vez, responde a esta necessidade estando bem coeso e bastante completo para o entendimento do assunto abordado. Um profissional da área da ciência médica, em específico, terá mais facilidade em navegar pelo livro e, em parte, os profissionais da área serão os grandes beneficiários deste manual, uma vez que a artéria do cunho científico e as terminologias estão sempre lá. Existem, no entanto, algumas muletas úteis que podem guiar o leitor comum que tenha no tema um maior interesse. Prova disso mesmo é, por exemplo, a lista inicial com o significado das siglas, abreviaturas e acrónimos. Faz-se, desta forma, jus à frase final do prefácio, do psiquiatra Rui Mota Cardoso: “Este livro é um guia que orienta o leitor através das estruturas clínicas ansiosas, de forma clara e precisa, com rigor e pertinência, mas sem exageros académicos ou simplificações pretensamente pedagógicas.”

Nunca é de mais ressalvar, obviamente, que este manual não pode tornar um leigo apto a tecer considerações e pareceres que só um profissional poderá fazer, não obstante os diferenciais de diagnóstico. A ser bem utilizado pelo leitor comum, se houver o interesse, o manual pode contribuir como fonte segura de informação e, como tal, contribuir para a literacia em saúde mental.

Ao todo, são oito os capítulos, organizados como artigos científicos, com a respectiva introdução e referências bibliográficas. A obra apresenta um extenso leque de autores e co-autores: além de Pedro Morgado, que coordena o livro, participam a psiquiatra Ana Matos Pires, Afonso Gouveia, Catarina Pedro Fernandes e João Revez Lopes, entre muitos outros. Se os capítulos podem ser lidos de forma independente? Sim, sempre podem. Está organizado para se encontrar, de forma rápida, um determinado conceito no qual se tenha interesse, no momento. Há, no entanto, uma lógica e uma linha orientadora que sempre ajudará e importa levar em conta. O manual começa por abordar a ansiedade enquanto parte da experiência humana e como pode chegar a constituir perturbações, com a descrição dos respectivos sintomas. Os dois capítulos finais dedicam-se, por sua vez, à farmacoterapia e às psicoterapias existentes. Um aspecto interessante é que não deixa de abordar, também, como a categorização da ansiedade e perturbações foram evoluindo à luz da medicina.

Uma ressalva que Rui Mota Cardoso faz, e que nunca é de mais chamar a atenção, é a tendência social da culpabilização que ainda perdura no que concerne à saúde mental.

Segundo o que o psiquiatra escreveu na introdução e pelas suas próprias palavras, “o sintoma traz consigo o estigma, sentido e consentido. No mínimo, o de fraqueza, no limite, o da deficiência. No interino, o da insuficiência pessoal, familiar, laboral, social e comunitária. Não há perturbação da pessoa que, além das causas desencadeadoras, não tenha causas predisponentes e até causas alimentadoras da sua manutenção. É assim mesmo na cirrose alcoólica, como o é na neoplasia do pulmão ou na do colo do útero. No entanto, no que ao sofrimento mental diz respeito, seja por atavismo seja por arcaísmo, enraizado na “noite” da razão ou no terror do desconhecido, só as causas predisponentes contam, e estas parecem referir-se não ao significado, mas ao significante, ou seja, ao doente. Logo, a causa, a culpa e a responsabilidade são do doente.”

Mas como se passa da ansiedade para a perturbação? O que é a ansiedade e em que é que constituem as perturbações?

Na nota introdutória, Pedro Morgado esclarece que, “as perturbações de ansiedade distinguem-se da ansiedade normal, uma vez que envolvem o desenvolvimento de sintomas desadequados em quantidade e/ou qualidade em relação ao estímulo que os originou. Além disso, os sintomas ansiosos apresentam uma duração excessiva e um impacto funcional significativo. A ansiedade inclui sintomas emocionais, neuro-vegetativos, comportamentais e cognitivos, podendo originar comportamentos de evitamento. Estas doenças demonstram elevada heterogeneidade nas suas apresentações clínicas e frequentemente confundem-se com doenças não psiquiátricas.”

Já a ansiedade, o que é? Segundo o que está descrito no primeiro capítulo, “Da ansiedade sintoma à ansiedade doença”, “a ansiedade é um estado de maior vigilância e capacidade de resposta que resulta numa gama de comportamentos defensivos. Estes servem para prevenir ou reduzir dano ao organismo face ao inesperado e a situações potencialmente perigosas, pelo que a ansiedade é, acima de tudo, um mecanismo fisiológico adaptativo que é essencial à sobrevivência. No entanto, a desregulação de circuitos da ansiedade, devido a causas genéticas ou adquiridas (por exemplo, stress crónico ou lesão cerebral traumática), leva a perturbações de ansiedade.”

Portanto, há que lembrar que o estado de ansiedade que todo o ser-humano tem, é diferente de uma perturbação de ansiedade, embora um possa desencadear o outro por factores exógenos (externos ou ambientais), como endógenos (internos, da biologia da pessoa).

No capítulo “Classificação e diagnóstico das perturbações de ansiedade”, da autoria de Sabrina de Jesus, Paula Garrido e Tiago Santos, explica que só metade “dos doentes com perturbações de ansiedade estão diagnosticados adequadamente.” O capítulo adverte também que “as perturbações de ansiedade incluem uma ampla gama de entidades clínicas que se caracterizam por níveis de ansiedade patológicos, ou seja, suficientes para condicionar sofrimento emocional e acentuado prejuízo do funcionamento diário. Encontram-se entre as perturbações de saúde mental mais comuns, chegando a afetar cerca de 30% dos adultos, pelo menos uma vez ao longo do seu percurso biográfico.”

Explica igualmente que, “de igual modo, é natural que o nível de ansiedade de uma pessoa a cada momento afete a sua capacidade de desempenho. Níveis exagerados de ansiedade podem comprometer a capacidade de pensamento, o planeamento e a realização de tarefas complexas, e pessoas com perturbações de ansiedade podem experienciar uma sensação constante de medo e preocupação. Quando a ansiedade está associada a incremento excessivo dos níveis de estimulação autonómica e a distorções cognitivas, incluindo perceções de ameaças exageradas e estratégias de coping disfuncionais, pode resultar em sofrimento significativo, com consequente prejuízo no trabalho, na escola, na família, nos relacionamentos e/ou nas atividades da vida quotidiana.”

O importante a reter, muito concisamente, do livro coordenado por Pedro Morgado é que ansiedade faz parte de todo e qualquer organismo como forma de defesa ou de maior vigilância a situações de maior perigo. Ter uma resposta ansiosa perante um motivo que assim o justifique, não significa que estejamos no âmbito de uma perturbação. Passa a ser perturbação quando as respostas ansiosas, tanto psicológicas como físicas (taquicardias, por exemplo) passam a ser amplificadas e desadequadas ao motivo propulsor, são constantes e passam a limitar a ocorrência normal do nosso dia-a-dia.

Não são só agentes biológicos e endógenos os responsáveis pela origem de uma perturbação da ansiedade. Esses agentes podem ser sociais e ambientais. Até porque como Rui Mota Cardoso afirma na introdução, “A saúde mental é o resultado bem ou malsucedido desta concertação, deste compromisso com a realidade”. E complementa, “a impossibilidade súbita ou prolongada de controlo, a ausência momentânea ou constante de uma rede de apoio e de uma matriz de afetos, a impotência imposta ou a inutilidade da ação, a sensação subterrânea e subliminar de ineficácia, a ferida insuportável da autoestima, a humilhação, as frustrações, os conflitos, externos e internos, e as perdas, a rutura da intimidade, o mobbing e o desemprego, a doença, sobretudo quando grave e incapacitante, e o saque do futuro são vicissitudes bastantes para abalar qualquer um de nós. Tudo depende das circunstâncias no momento e se são consentâneas com, e apercebidas como, vivências de desafio, ameaça ou dano.”

Pode-se, aqui, fazer uma ponte com o que Pedro Morgado afirmou numa entrevista de 2021 à Comunidade Cultura e Arte, “De facto, a organização económica baseada na “uberização” de tudo está a deslaçar a matriz coletiva que garantia o nosso suporte social. Tendemos a olhar para o sucesso como o produto exclusivo do mérito individual o que gera profundas e injustificadas insatisfações. Do mesmo modo, os fracassos são vividos de uma forma muito mais auto-penalizadora e dolorosa. É preciso considerar todas as modalidades de trabalho de forma a garantir a melhor harmonia entre a produtividade e a saúde dos trabalhadores.”

O livro esmiúça a “Perturbação de Ansiedade Generalizada”, “Perturbação de Pânico” e “Perturbações Fóbicas”, assim como Reacções ao Stress. De forma bem clara, estão descritos os sintomas, como estes se desencadeiam fisiologicamente, assim como os critérios de diagnóstico. No final, além, de um capítulo dedicado à farmacoterapia, também aborda a psicoterapia aplicada, começando por dar enfâse às Terapias Cognitivas, Comportamentais. Qualquer médico interno da especialidade como estudante de medicina poderá beneficiar bastante destas partes em específico.

O alerta também é dado aos Médicos de Medicina Geral e Familiar, uma vez que são estes que se deparam com os primeiros alertas de qualquer doença e fazem a ponte com a linha estratégica a seguir. Importa lembrar, tal como está descrito no capítulo “Classificação e Diagnóstico das Perturbações de Ansiedade” que “de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas cerca de metade dos doentes com perturbações de ansiedade estão diagnosticados adequadamente, o que limita a implementação de um projeto terapêutico adequado e potencia o agravamento do quadro ansioso.
Apesar da sua elevada prevalência e natureza frequentemente crónica, estas perturbações tendem a não receber o mesmo reconhecimento que outras síndromes mentais graves, como as perturbações do humor e as perturbações psicóticas.”

Quanto aos médicos de família, é deixado o alerta: “O médico de Medicina Geral e Familiar é, habitualmente, o primeiro contacto dos doentes com perturbações de ansiedade, e não raras vezes o quadro clínico manifesta-se de forma subtil. É fundamental que este médico disponha dos recursos que lhe permitam identificar as entidades mais comuns destas perturbações, para que a orientação e o tratamento sejam o mais adequados possível. O papel de fatores biológicos, psicológicos e ambientais na expressão e na manutenção das perturbações de ansiedade encontra-se bem documentado. Assim, uma abordagem biopsicossocial do doente facilita não apenas o estabelecimento de uma relação terapêutica satisfatória, como também a identificação dos vários fatores que influenciam o sintoma apresentado, o diagnóstico e o eventual plano de tratamento”. Urge, portanto, uma maior contextualização e consciencialização.

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