Marco Martins desafia sombras da ditadura e ascensão de extrema-direita em “A Colónia”

por Lusa,    4 Dezembro, 2024
Marco Martins desafia sombras da ditadura e ascensão de extrema-direita em “A Colónia”
“A Colónia”, de Marco Martins / DR

A peça “A colónia”, baseada num local de férias para filhos de presos políticos portugueses, é a nova criação de Marco Martins, que revisita a ditadura e questiona “a atual ascensão de movimentos nacionalistas”.

A estrear-se na quinta-feira na Culturgest, em Lisboa, a peça põe em palco a história de uma colónia de férias para filhos de presos políticos, entre os 3 e os 14 anos, criada nas Caldas da Rainha, em 1972, por um grupo de cidadãos empenhados na defesa dos direitos cívicos, desiludidos com a gorada “Primavera Marcelista”.

Durante duas semanas, 18 crianças puderam conhecer outras crianças, puderam brincar. Passados mais de 50 anos, podem subir a palco, contar as suas histórias. Marco Martins considera esse gesto fundamental e agradece-lhes “a coragem e ousadia” de falarem “sobre o dia da prisão dos pais, das visitas às prisões”, para que “tudo aquilo por que os pais passaram, tudo aquilo por que eles próprios passaram não tenha sido para nada”.

“A Colónia”, de Marco Martins / DR



A produção de “A Colónia” impôs-se a Marco Martins depois de ler uma reportagem de Joana Pereira Bastos, sobre esta colónia, no semanário “Expresso”, em 2022, que valeu à jornalista o Prémio Gazeta de Imprensa. Para o encenador e realizador tornou-se cada vez mais urgente pôr a história em palco. As comemorações dos 50 anos do 25 de Abril deram o pretexto.

A ideia inicial, disse o encenador em entrevista à agência Lusa, era “falar sobre a PIDE e o modo desta operar”. A partir daí iniciou uma investigação rigorosa, desde os arquivos da PIDE na Torre do Tombo, aos contactos com a autora da reportagem, com resistentes como Teresa Dias Coelho e Margarida Lisboa, nascidas em ditadura, com antigos presos políticos, como o conhecido casal Domingos Abrantes e Conceição Matos, que também fazem parte do elenco, e com crianças que passaram férias na colónia.

Hoje, aqueles que, naquele verão de 1972, puderam brincar em liberdade, num espaço protegido de ameaças, são adultos, quase todos com mais de 60 anos. Alguns não quiseram falar, nem aparecer em cena. Mas a memória das sombras da ditadura, das suas ameaças, permanece. Daí a urgência.

“Está claramente a repetir-se, de uma forma muito clara perante os nossos olhos”, esse tipo de ameaça, disse Marco Martins à Lusa. Tem “outros protagonistas, algumas diferenças, mas essencialmente é a mesma história”, num mundo de pré-conflito global, onde as guerras se multiplicam, pelo que se torna “muito importante” trazer a público a vivência daqueles miúdos, enfatizou o encenador e realizador.

Marco Martins sublinha que se falou sempre muito pouco destas crianças, dos filhos de presos políticos “que foram vítimas, mas também heróis”, crianças “deixadas de fora pela História”, e que “condensavam nelas uma série de questões inerentes ao fascismo”, sobretudo “na forma como este condiciona os modos de vida, a educação, os corpos e o desenvolvimento intelectual”.

A dramaturgia do espetáculo foi sendo desenhada passo a passo, conforme a investigação avançava, partindo das questões que desde o início lhe eram evidentes: “Como contamos esta história e como é que esta história é transmitida através do tempo, através das pessoas?”, pois é “através das histórias” que a memória se transmite. Outro fator importante para avançar no projeto, é a ideia de que hoje “os miúdos sabem muito pouco sobre o 25 de Abril”, começa a ser “uma coisa muito distante”.

Num cenário dividido em dois pisos, Marco Martins sobrepõe camadas sobre camadas de testemunhos, de memória, narração sobre narração.

“A Colónia”, de Marco Martins / DR

“A Colónia” abre com Domingos Abrantes a falar da vida em clandestinidade, da “vida que tinha de ser construída, falsa”, com constantes mudanças de nome, de profissão, de casa, contornando a opressão e a ditadura do Estado Novo.

Sucede-lhe Manuela Canais Rocha, que viveu na clandestinidade com os pais e chegou a ser presa com a mãe. Durante muito tempo sentiu-se uma aberração, confessa. Manuela nasceu em casa, foi registada anos mais tarde e até quase aos seis anos não saiu. Não via bem, usava óculos, não conheceu nem brincou com outros meninos, só com os pais e a irmã mais nova. Se a memória não a trai, como diz em cena, “só soube o nome [real] da mãe” quando foi presa pela PIDE.

Manuela fala, sem que se lhe anteveja o rosto: “Confio em ti para contares a minha história”. Com o tempo, vai-se libertando, falando mais, tornando-se na figura central. O processo tem paralelo a outros trabalhos anteriores de Marco Martins, na maioria do encontro com comunidades específicas com quem desenvolve demorados processos de criação, numa busca da “poesia partilhada do dia-a-dia”.

Antigos companheiros da colónia de férias, como Humberto Candeias, Olga Sequeira Santos e Valentina Marcelino, vão-se juntando a Manuela. Entre eles está também Conceição Lopes, que aos 21 anos foi uma das monitoras. Na colónia fez um diário, crucial para hoje se poder revisitar esses dias.

A determinada altura, Conceição Lopes assume o discurso. Recorda como as monitoras tudo faziam para, “na medida do possível, minimizar traumas, desassombrar fantasmas, ministrando um novo modelo de educação e uma vivência de felicidade” às crianças da colónia. Foi lá que muitas puderam brincar com outras, experimentar o recreio livremente, apesar de os ‘pides’ rondarem, como recorda.

À realidade dos meninos “A Colónia” Marco Martins sobrepõe discursos de líderes fascistas italianos, alemães, de Salazar, imagens de fichas de presos políticos. E discursos atuais de movimentos ultranacionalistas e populistas em ascensão.

Marco Martins “presta homenagem àquelas crianças” vítimas e heróis. E leva também para palco jovens alunos de escolas secundárias, como a Camões e a Padre António Vieira, em Lisboa, a quem cabe “passar aquelas histórias”, sentir o impacto de as ouvirem, para que “a memória não se apague”.

“Já não vou ser eu, que tenho 52 anos [Marco Martins nasceu em 1972], ou nós [mais velhos] que vamos transmitir aquelas histórias. É a história deles, dos avós deles, dos meus pais […] É a nossa história” coletiva. “Não é uma história das outras pessoas. A peça tem uma ambição de ser um debate coletivo, uma criação coletiva”.

Na base de “A colónia” estão documentos e testemunhos de todo o elenco e há também referências a textos de Bertolt Brecht, Czeslaw Milosz, Deborah Levy, Filippo Marinetti, Gonçalo M. Tavares, Jean-Luc Godard, Anne Marie Miéville, Slavoj Zizek e William Shakespeare.

“A Colónia”, de Marco Martins / DR

As interpretações são de Manuela Canais Rocha, Conceição Lopes, Conceição Matos, Domingos Abrantes, Humberto Candeias, Olga Sequeira Santos, Rita Veloso, Valentina Marcelino e João Pedro Vaz, com Sara Carinhas, Ana Vilaça, Rodrigo Tomás e Anderson Ramos, Arthur Lupi, Beatriz Ribeiro, Diana Soares, Inês Paulino, Joaquim Queiroz, Laura Trueb, Leonardo Martins, Lurdes Ferraz, Milena Mavie, Niurka Sacramento e Pedro Conceição. A música é de B. Fachada e João Pimenta Gomes.

“A Colónia” estreia-se esta quinta-feira, às 21:00, na Culturgest, onde fica em cena até dia 14. A ficha técnica, com as dezenas de pessoas envolvidas na produção, e os horários de fim de semana e de sessões para escolas, com conversa, audiodescrição e interpretação em Língua Gestual Portuguesa ou com reconhecimento de palco para pessoas com deficiência visual podem ser consultados no ‘site’ da Culturgest.

Coprodução da Culturgest, Teatro Nacional S. João, RTP e Arena Ensemble, “A Colónia” estará em cena no Teatro Nacional de S. Joao, no Porto, em janeiro.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.