Maria Isabel Allende ressentida com partidos de direita por não condenarem golpe de Estado
A filha de Salvador Allende, Maria Isabel Allende, disse hoje à Lusa que a história julgará os partidos de direita do Chile por não condenarem o golpe de Estado de 1973, e relatou os últimos minutos ao lado do pai.
“Temos partidos de direita que foram incapazes de assinar uma carta que fortaleça a democracia, dizendo ‘Nunca Mais’, sob nenhuma circunstância, pode haver um golpe de Estado. Considero isso muito doloroso. A história os julgará”, disse à Lusa a senadora socialista Isabel Allende, de 78 anos.
A senadora tinha acabado de fazer um comovente discurso na Praça da Constituição, em frente ao Palácio La Moneda, sede do Governo chileno, 50 anos atrás bombardeado, sob comando do general Augusto Pinochet, numa violenta exigência de rendição de Salvador Allende, democraticamente eleito.
“Este ano, a homenagem foi muito comovedora e muito emotiva, mas, por outro lado, do ponto de vista chileno, acredito que tenha havido muito retrocesso”, lamentou Isabel, que, por outro lado, valorizou o gesto dos ex-Presidentes vivos desde o regresso da democracia em 1990.
“Estiveram à altura os ex-Presidentes. Todos foram capazes de assinar, enquanto os partidos políticos de direita, opositores hoje em dia, não tiveram essa condição”, reforçou Isabel Allende.
O Presidente chileno, Gabriel Boric queria que todos os partidos participassem do denominado “Compromisso de Santiago” que defende quatro princípios básicos: “Cuidar e defender a democracia”; “Enfrentar os desafios da democracia com mais democracia”; “Defender a promover os direitos humanos” e “Fortalecer a colaboração entre os Estados”.
No entanto, a extrema-direita representada pelo Partido Republicano e a direita tradicional representada na coligação “Chile Vamos” negaram-se a assinar o termo. Esse setor, atualmente em maioria e vinculado ao antigo regime militar, discorda do conceito de um golpe de Estado, interpretando que a ação de Pinochet, há 50 anos, foi para salvar o país do comunismo.
Nesse sentido, culpam Salvador Allende por ter levado o país àquele ponto.
Enquanto Isabel Allende fazia um emocionante discurso sobre como viveu aquele 11 de setembro de 1973, o partido de extrema-direita União Democrata Independente (UDI), integrante da coligação “Chile Vamos”, emitia uma nota na qual justificava o golpe, definindo-o como “inevitável” devido à situação extrema provocada por Salvador Allende, polarizando o país.
Para Isabel Allende, “esses partidos têm tentado inverter as responsabilidades da tragédia”.
“Esses setores que fecharam os olhos perante as violações aos direitos humanos têm tentado justificar esse cruel golpe militar e civil. Nesses últimos meses temos visto com dor e com preocupação que promovam um revisionismo histórico, tentando inverter as responsabilidades pela tragédia”, acusou.
“De maneira insólita, procuram deformar os factos e culpar o Presidente Allende pelo golpe de Estado”, remarcou Isabel Allende.
Isabel fez um discurso que comoveu o país, falando pontualmente depois do minuto de silêncio às 11:52H, horário em que, há 50 anos, começava o bombardeio que destruiria parcialmente o Palácio La Moneda e que levaria o seu pai ao suicídio.
Entre lágrimas, Isabel explicou que tinha tentado construir um relato para os 50 anos do golpe.
“Acreditem! Não foi fácil. Na verdade, foi triste e doloroso. Eu fui a última pessoa, do círculo do meu pai a entrar no Palácio naquele dia”, contou a filha emocionada.
Naquele dia de manhã, Isabel tinha ido ao Palácio para apoiar o pai, perante as advertências de um golpe militar em marcha.
“Eram cerca das nove da manhã, quando consegui entrar pela porta que o meu pai costumava usar. A minha irmã Beatriz trabalhava na Secretaria Privada com o meu pai. Mesmo com uma gravidez de sete meses, nunca duvidou ficar ao lado do meu pai, na resistência em defesa da democracia”, recordou a senadora.
“Não esqueço o seu último abraço, a sua candura, o seu amor infinito e o seu humor”, disse já com a voz embargada.
No final do discurso, Isabel Allende citou o poeta uruguaio Mario Benedetti, em referência ao seu pai: “Para matar o homem que era um povo, tiveram de ficar sem o povo”.
O Primeiro Ministro português, António Costa, também se mostrou emocionado.
“Quando vemos que, depois de uma brutalidade como aquela que aconteceu aqui com o golpe há 50 anos, momentos tão marcantes como o testemunho que ouvimos aqui da senadora Isabel Allende, que aqui esteve a despedir-se do pai, sabendo que era a última vez que ia estar com ele e que aqui perdeu a vida poucas horas depois, eu saio com muito bom espírito”, disse António Costa aos jornalistas enviados a Santiago.