“Maus”, de Art Spiegelman: uma história sobre terror e esperança (ou falta dela)

por José Moreira,    1 Outubro, 2022
“Maus”, de Art Spiegelman: uma história sobre terror e esperança (ou falta dela)
“Maus”, livro de Art Spiegelman
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Esta novela gráfica de Art Spiegelman, a primeira galardoada com o Prémio Pulitzer, é considerada por muitos como a melhor e mais importante obra do género. Spiegelman criou “Maus” com uma motivação fundamentalmente terapêutica e pôde desta forma exorcizar os demónios que a sua família judaica carregou em consequência da Segunda Guerra Mundial. Filho de sobreviventes de Auschwitz, e nascido em 1948 no pós-guerra, sentiu desde cedo a sombra do Holocausto nas suas relações familiares. O impacto na sua saúde mental manifestou-se num esgotamento nervoso em 1968. Pouco tempo depois deste episódio, a sua mãe suicida-se. 

No início dos anos 70, e já considerado um autor de culto do segmento dos “comics”, começa a desenvolver esta obra profundamente catártica. Em “Maus” (Ou Rato em alemão) o autor conceptualiza uma separação antropomórfica que simbolicamente representa a segregação racial da ideologia Nazi. Desta forma define: os Judeus como Ratos; os Nazis/Alemães como Gatos; os Polacos como Porcos; os Americanos como Cães.

Tira de “Maus”, livro de Art Spiegelman

“Maus” foi inicialmente pensado como uma forma de documentar as memórias do seu pai, Vladek Spiegelman. Quis eternizar as experiências da guerra e da passagem por Auschwitz da mãe Anja, do irmão Richieu, dos avós ou restante família e amigos. A narrativa vai-se tornando um acto de desconstrução da própria memória de Art em relação ao Holocausto, à sua família e a si mesmo. Confronta-se diversas vezes com as falhas de carácter do pai, sentindo-se na obrigação de as destacar em vez de as ocultar. Desta forma apresenta o pai como uma pessoa “real” para além do símbolo de vítima do Nazismo. Não hesita em dar ênfase a situações que colocam Vladek sob as caracterizações antissemitas estereotipadas pelos próprios Nazis, tais como a avareza e a ganância. Não hesita em contar a história como deve ser contada e aí reside boa parte do mérito deste incrível testemunho ilustrado por Spiegelman.

Tira de “Maus”, livro de Art Spiegelman

Existe uma constante crueza nos relatos de Vladek, mesmo que filtrada pela sua personalidade perseverante. O que para mim fica subentendido, é a existência de um sentimento não assumido de culpa de sobrevivente, que carrega para a vida toda. Por sua vez, a relação de Art com os pais é bastante condicionada emocionalmente, principalmente pelas memórias que tinham de Richeau e que se infundem na maneira como o tratam.

Tira de “Maus”, livro de Art Spiegelman

Destaco a forma como a estética escolhida por Spiegelman, o preto e branco, combina perfeitamente com o peso emocional da narrativa e proporciona uma leitura das memórias de Vladek com a “atmosfera” adequada. Apesar de serem meios diferentes, esta temática e linguagem gráfica pode invocar alguma da imagética do filme “A Lista de Schindler” na mente do leitor (filme de Steven Spielberg que retrata o Holocausto também a preto e branco). Enunciando outra similaridade mais ou menos evidente: ambas as obras procedem à humanização das vítimas da barbárie sem as idealizar, retratando-as como pessoas e não como pobres coitados. Esta é uma história sobre o terror e esperança (ou falta dela) de uma guerra, os diferentes níveis de perda e como um indivíduo e o próprio núcleo familiar lidam com ela.

Destaco também uma pequena curiosidade final, que talvez não tenha passado despercebida: houve uma polémica mediática sobre “Maus” no início de 2022. Isto ficou-se a dever às notícias da sua proibição no programa curricular por parte de uma escola no Tennessee, E.U.A. Uma das premissas centrais para a sua remoção terá sido a inclusão de palavrões no texto. Isto leva à seguinte reflexão: será válido banir, por questões de linguagem, uma obra que se tornou um marcante complemento à aprendizagem, à reflexão e à construção da memória colectiva sobre um período histórico de desumanização como o Holocausto?

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