Medicina Humanitária. “Um médico que não sai da bolha e não sabe o estado económico do país não interpreta bem a comunidade onde actua”
A Escola de Medicina da Universidade do Minho (UM), em conjunto com associação “Porta Nova” — através de Carolina Martins, estudante do 6.º ano, e os ex-alunos Carolina Lopes, Duarte Baptista e Nuno Madureira — tem uma nova unidade curricular opcional, “Medicina Humanitária”, direcionada para os alunos de 2.º ano do Curso de Medicina da UM. A cadeira conta com a coordenação de Jorge Hernâni-Eusébio, juntamente com a professora Margarida Correia-Neves. Não esquecendo temas como cuidados de saúde nos trabalhadores do sexo, reclusos, toxicodependentes e comunidade cigana — o mote da disciplina, mais do que formar médicos para irem em missões humanitárias, prende-se com uma medicina mais humanizada que ajude futuros médicos a actuarem de forma mais inclusiva, conhecedora e igualitária na comunidade em que actuam. Até porque, como frisa Nuno Madureira, “se não conhecermos as comunidades minoritárias que queremos ajudar e apoiar, nunca deixarão de o ser e nunca terão acesso à saúde como a comunidade maioritária tem. Existe essa diferença. Esse foi o mote que nos fez avançar.”
Por isso mesmo, também decidiram incluir a vertente da “economia social”, dada por Susana Peralta. Como afirmou Jorge Hernâni, ” Um médico que não consegue sair da sua bolha e não sabe como está o estado económico do país, se calhar não vai interpretar bem a comunidade na qual exerce as suas funções, em especial na saúde pública ou nos cuidados de saúde primários.” A cadeira foi administrada por vários especialistas, desde Gustavo Carona, para falar de cultura e religião, tendo em conta as suas próprias missões; Susana Peralta, para falar de economia social; João Goulão, sobre toxicodependência; passando por Vanessa Matos, activista cigana, para descodificar e dar a conhecer melhor a comunidade cigana em Portugal. A Comunidade Cultura e Arte falou com Nuno Madureira e Jorge Hernâni sobre a cadeira opcional e, acima de tudo, sobre como a medicina humanitária é tão importante para conhecerem melhor as comunidades onde actuam, ajudando, dessa forma, a colmatar as falhas existentes.
“Como a “Medicina Humanitária” é muito abrangente e, por isso mesmo, pode parecer um conceito um pouco vago para quem nos lê, podem começar por explicar o que é, afinal, “Medicina Humanitária” e de que forma pode fazer a ponte com as diversas franjas da sociedade?”
Nuno Madureira: Essa é uma pergunta difícil de responder por causa da abrangência da medicina humanitária. É fácil de entender, contudo, se percebermos a origem da cadeira na nossa universidade, ou seja, o facto de ser uma consequência de uma coisa maior. A medicina humanitária, em si, são todos os movimentos e trabalhos médicos. O trabalho humanitário médico é um trabalho que é realizado, muitas vezes, após a especialização médica, e dá-se quando médicos são contratados por organizações para desempenharem trabalhos médicos em locais desfavorecidos no planeta — digamos assim, de forma muito simples — ou com comunidades desfavorecidas em situações ou alturas específicas da actualidade, em situações emergentes. Nesse sentido, a nossa cadeira surge porquê? Surge porque, em 2018, um grupo de estudantes da Universidade do Minho, da Escola de Medicina da Universidade do Minho, criou um projeto para desenvolver atividades humanitárias pelos estudantes. Esse projecto chama-se “Porta Nova” e trabalha em conjunto com vários hospitais dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) e leva dezenas de estudantes a fazer estágios opcionais e estágios humanitários, nesses hospitais, durante cinco semanas.
Quando o Porta Nova foi criado em 2018, esse grupo de estudantes acaba por mudar, depois, o ambiente da escola e acaba por trazer o tema da medicina humanitária, que passa a ser discutido diariamente. O “Porta Nova” mantém-se como um projeto importante na escola, sendo ele todo de cariz estudantil, ou seja, foi criado por estudantes para estudantes, com o apoio da escola, mas sempre de estudantes para estudantes. Em 2020, tornou-se uma associação e continua a fazer esse trabalho, formar e levar estudantes para estágios em hospitais nos PALOP. No início deste ano, surgiu a oportunidade de realizarmos uma cadeira opcional para o 2.º ano e fomos convidados pelo grupo de alunos que fundou o “Porta Nova”, no início, para fazer parte da criação desta cadeira de medicina humanitária.
“Uma parte da cadeira trata as missões humanitárias, o que são e como funcionam, mas o grande, grande foco da formação em medicina humanitária é que eles possam utilizar estas noções no seu futuro — médicos das mais diversas especialidades — tanto em Portugal como fora do país.”
Jorge Hernâni
Focou o papel da “Medicina Humanitária” em sítios desfavorecidos e a ligação a ONGs. Mas estes assuntos seriam muito importantes, até, para médicos que não tenham em vista, especificamente esse fim, não é? Porque um médico, se calhar, a partir do momento em que começa a trabalhar, nunca tem essa consciência de quem vai encontrar no seu consultório.
Jorge Hernâni: Como já foi abordado, e muito bem, a “Medicina Humanitária” prende-se, mesmo, com a abordagem às camadas mais desfavorecidas em qualquer ponto do planeta. Nós tínhamos e temos um lema, nesta cadeira, que vai ao encontro do que nos perguntou — queríamos levar os nossos alunos à prática de uma medicina mais humanitária. Falo por mim, não faço parte do “Porta Nova”, sou apenas colaborador deles e a ponte de ligação à escola — nunca fui em missão humanitária. No meu caso pessoal, não obstante, já realizei alguns trabalhos junto da comunidade cigana de Braga, através da “Cruz Vermelha”, e o nosso objectivo não é sermos o paladino do que quer que seja, é dar informação aos nossos alunos, informação que eles não têm no dia-a-dia, no hospital ou no centro de saúde. Como é que funcionam, por exemplo, as dinâmicas familiares dentro da comunidade cigana? Como é a cultura cigana para eu saber lidar melhor com o doente cigano? Que diferentes vicissitudes religiosas nos trazem os imigrantes, nomeadamente os refugiados, que vêm de países da África, Ásia ou América Latina? O que é que nos trazem? Que vicissitudes têm algumas franjas da sociedade como, por exemplo, os trabalhadores e trabalhadoras do sexo que são, muitas vezes, alvo de discriminação em consulta e nos cuidados médicos?
Muitas vezes nem se sabe que o são e é preciso saber-se porque há vicissitudes especiais. Mas mais, como é que conseguimos lidar com a saúde dos reclusos, como é que conseguimos lidar com a saúde do toxicodependente — doentes, também, com vicissitudes muito especiais. É este tipo de humanismo, que está na base dos direitos humanos (são direitos humanos) que pretendemos. Como disse muito bem, nós não queremos formá-los, a todos, para ir em acções humanitárias. Uma parte da cadeira trata as missões humanitárias, o que são e como funcionam, mas o grande, grande foco da formação em medicina humanitária é que eles possam utilizar estas noções no seu futuro — médicos das mais diversas especialidades — tanto em Portugal como fora do país.
No vosso caso, tendo em conta a vossa experiência, vocês sentiram esse choque quando entraram em actividade? O choque de lidarem com a sociedade real? Talvez as universidades não tivessem no currículo essa preocupação em vos dar essa preparação.
Nuno Madureira: A minha experiência é curta, mas tive um privilégio muito grande. O “Porta Nova” leva-nos a pensar em medicina humanitária, mas como é uma experiência formativa para estudantes, facilmente fazemos essa ponte entre medicina humanitária além-fronteiras e, rapidamente, percebemos o quão útil é no nosso dia-a-dia. Essa preocupação que nos faz ir e partir para mais longe e olhar para situações mais difíceis é, rapidamente, esclarecida no dia-a-dia, muito rápido. Acho que nunca pensei que fosse tão fácil de assumir. Desde o nós estarmos a realizar esta cadeira até a uma aula que foi muito, muito, gratificante e tivemos um bom feedback por parte dos alunos — nós gostamos imenso também — foi a aula da comunidade cigana. Tivemos uma óptima aceitação por parte dos alunos e as dicas de comunicação, os pequenos conhecimentos que nós ganhámos naquelas duas horas de aula são, fácil e rapidamente, utilizáveis em consulta ou numa abordagem num serviço de urgência ou numa passagem de visita no internamento de pediatria, ou em comunicação com uma mãe recente no internamento em puerpério. É tão simples, tão transformador que acaba por ser difícil de explicar. É muito transponível aquilo que aprendemos, aquilo que fizemos na cadeira, para a prática clínica. É transformador, completamente transformador.
Jorge Hernâni: Sou médico há 5 anos — médico interno de medicina geral e familiar — e lido com doentes, todos os dias, em contexto de consultório, das mais variadas etnias, religiões, crenças, credos e diferentes níveis de erudição. Posso-lhe dizer que o que aprendemos na cadeira, para mim, foi um choque, e penso que a nossa cadeira opcional foi só escolhida por 20 alunos, mas tivemos a grande sorte de serem 20 brilhantes alunos — poderia, contudo, estender-se a muitos mais. Gostaria de ter tido esta cadeira quando era estudante e gostaria que abrisse horizontes. Penso que os nossos convidados — as aulas não foram dadas por nós, foram convidados especialistas das mais diversas áreas, desde “Economia Social”, por Susana Prata, até a Gustavo Carona para falarmos das suas missões e de religião — foram pessoas tão díspares e tão especialistas nas suas áreas que eu gostaria de ter tido isto. Para dar um exemplo, estamos no âmbito da pandemia e há dois nomes da saúde pública que nos saltam à vista dos telejornais: Ricardo Mexia e Bernardo Gomes. Tivemos Bernardo Gomes a falar de saúde pública e saúde comunitária, por exemplo. Gostaria de ter tido isto quando era estudante e daquela idade, percebe? Acho que foi construtivo, mesmo para nós, docentes, foi muito construtivo.
Relativamente à comunidade cigana, penso que o Nuno Madureira modificou a sua abordagem, na hora de tratar a admissão de uma menina cigana. Pode dizer de que forma a aula sobre a comunidade cigana ajudou-o a limar ou modificar aspectos da sua abordagem?
Nuno Madureira: O facto de ter conhecimentos sobre a comunidade cigana já assumidos por mim, torna mais livre a minha comunicação, ou seja, só por me ter esforçado para perceber algumas coisas, sou mais franco e mais verdadeiro na minha comunicação. O exemplo mais simples, acho que foi este: na comunidade cigana, as pessoas adoptam um nome. Elas têm o costume de dar um nome, para as crianças, que é mais útil na comunidade e outro que, se calhar, é mais utilizado na escola ou no contacto com a comunidade maioritária. Ao perguntar o nome a uma das crianças, diz-me o nome que utiliza mais vezes na comunidade maioritária, na escola ou com as amigas. Mas se ouvir o que a mãe lhe chama, é um nome diferente, o que é usado na comunidade cigana, que é quase uma alcunha que os nossos familiares usam, mas é utilizado mais abrangentemente pela comunidade cigana e pelas pessoas próximas. Nesse sentido, para ter uma ligação mais próxima com a criança, para ser mais confiável, pergunto-lhe se lhe posso chamar pelo nome que dizem na sua comunidade. São pequenas diferenças. Se calhar, em vez de nos chamarem “Senhor Doutor” ou “Senhor Enfermeiro”, se chamarem Senhor, também não é de forma pejorativa, pouco educada, porque “Senhor” e “Senhora”, na comunidade cigana, é a forma que usam para identificarem, de forma respeitosa, a comunidade maioritária, ou seja, não temos de nos sentir desrespeitados quando tratados dessa forma por eles.
Têm a noção se a comunidade cigana, quando se dirige a um organismo público, como um hospital, não se sente já com um pé atrás? Ou com receio porque não sabem como irão ser aceites e atendidos?
Jorge Hernâni: Isso foi uma pergunta muito bem feita porque constituiu um enfoque muito grande na aula sobre a comunidade cigana. Já agora, para dar um contexto da nossa aula de comunidade cigana, tivemos a sorte de ter a Vanessa Matos, que é uma activista cigana que trabalha na Cruz Vermelha de Braga, e tivemos também o David Rodrigues, da Cruz Vermelha de Braga, que faz a ponte entre a Cruz Vermelha e o Bairro de Santa Tecla, de Braga, no âmbito do projecto “Geração Tecla”, que tem feito coisas fantásticas na comunidade. Isso foi, de facto, um dos grandes enfoques e as dúvidas dos nossos alunos foi mesmo nesse prisma. Repare que nós estamos acostumados, na nossa ideia preconcebida, a achar que quando um cigano está no hospital, a família vem toda atrás e está ali para fazer confusão. Isso vai bater, exatamente, na sua pergunta. Normalmente, a comunidade cigana é minoritária e sabe que o é, são portugueses ciganos, ou seja, eles sentem-se em minoria e sentem que um deles está a ir para um local onde só há maioritários, à priori. É uma questão de apoio, de defesa, de dizer, “os teus estão aqui fora”, foi isso que nos foi explicado, pelo menos na aula, e que é muito importante para nós, tendo em conta que são pessoas que, habitualmente, já são olhadas de lado — quando nos hospitais esperam cá fora, já são olhadas do lado. Foi muito importante percebermos que, se tentarmos arranjar um porta voz daquela gente toda que lá está, para lhes explicarmos a situação, e pedirmos a esse porta-voz para passar a informação a todos os outros, é muito mais importante do que começar por dizer que não podem “estar todos aqui dentro”, só para dar um exemplo muito paradigmático de urgência, por exemplo.
Há bocado, perguntou ao Nuno como a aula o ajudou a lidar com a menina. Já vivo com a comunidade cigana há alguns anos, no entanto, não fazia ideia de que se tratasse um ancião — um idoso ou idosa cigana — por tio ou por tia, ficaria muito mais bem visto, porque é assim que, carinhosamente, os mais idosos são tratados dentro da comunidade. Posso dizer que, depois dessa aula, fiz a experiência numa consulta e a resposta que tive de um senhor cigano — um utente com quem já falava há muito tempo — foi fantástica. Perguntei-lhe, “posso tratá-lo por tio?” O senhor respondeu-me, “Doutor, vejo que percebe que é assim que nós falamos uns com os outros.” Foi muito bonito, foi uma coisa muito bonita e acho que vai bater muito na percepção de que são olhados de lado.
Nuno Madureira: A busca da empatia, penso eu, no primeiro contacto com a comunidade cigana nos cuidados de saúde, é essencial. Foram completamente transformadoras estas ferramentas que encontrámos, nesta aula, para pormos em prática no nosso dia-a-dia.
“Não há, propriamente, um projecto de saúde mental dentro das prisões com cabeça tronco e membros.“
Jorge Hernâni
Jorge Hernâni: Além disso, alunos nossos, num projeto que fizeram — cabe aos nossos alunos, após o fim da cadeira, desenvolverem um projeto de intervenção na comunidade — procuraram melhorar a literacia em cultura cigana nos futuros médicos, e a intervir na comunidade através dos médicos. Isto porque têm muitos dados do “Observatório das Comunidades Ciganas” que provam, efectivamente, que a comunidade cigana tem menos esperança média de vida do que a comunidade maioritária. A própria comunidade cigana sente que tem menos acesso aos cuidados de saúde e que é discriminada no acesso aos cuidados de saúde. Por isso, por vezes, não é entendida. Portanto, isto acaba por bater na pergunta que faz e penso que todo este caudal de aprendizagem pode levar a um estado de empatia maior. Não estamos a dizer que vamos mudar o mundo, mas se dar a pedrada no charco, isso já é uma coisa muito importante.
Achei curioso haver uma aula dedicada aos cuidados de saúde dos reclusos. Achei curioso porque acho que não temos grande noção, socialmente, de como estes são administrados ou se existem grandes lacunas na forma como são administrados. Há ou não lacunas na forma como os presidiários têm acesso aos cuidados de saúde?
“Se não conhecermos as comunidades minoritárias que queremos ajudar e apoiar, nunca deixarão de o ser e nunca terão acesso à saúde como a comunidade maioritária tem. Existe essa diferença. Esse foi o mote que nos fez avançar.“
Nuno Madureira
Jorge Hernâni: Por lei, os cuidados de saúde são atribuídos aos reclusos. Se eles são parcos ou não, na prática, a teoria é outra.
Nuno Madureira: É mais a qualidade de vida, a qualidade do dia-a-dia deles que nós estamos a procurar perceber, ou seja, nós, ao realizar a organização da unidade curricular, tivemos uma parte mais orientada para as comunidades — as duas primeiras semanas — em que nós abordamos as comunidades com convidados especialistas sobre elas e, depois, há uma parte mais abrangente sobre medicina humanitária. Mas na parte da comunidade presidiária, apercebemo-nos que este grupo, esta comunidade minoritária ou mais fragilizada pela experiência que está a ter, nesse sentido, encontram-se desfavorecidos nos direitos que ainda têm. Acho que é transformativo para os alunos, nesse sentido, perceberem que os relatórios europeus — em concreto o comité europeu para a prevenção da tortura — demonstram que as condições do nosso sistema presidiário, em Portugal, eram muito baixas e tinham muitos erros. Percebemos que as condições presidiárias não eram as que estávamos à espera ou que, pelo menos, a comunidade maioritária esperava. Não esperávamos que essa comunidade estivesse fragilizada e vulnerável a esse ponto, está, e não tínhamos noção dessa realidade. Tudo o resto que pode ser questionado em termos clínicos é muito, muito profundo, desde a prevenção de doenças respiratórias, doenças sexualmente transmissíveis — todo esse trabalho — até a doença mental. É, portanto, um trabalho muito abrangente, mas tratou-se de uma aula para nós percebermos mais os riscos e o porquê da fragilidade e vulnerabilidade do que, propriamente, as características específicas.
Jorge Hernâni: É, também, muito importante desmistificar, muito bem, o sistema prisional, que deveria ser reabilitador e, muitas vezes, falha nessa reabilitação — nomeadamente no regresso dos reclusos à vida activa. Há falhas, muitas vezes, nesse sentido. A saúde mental dos reclusos, como o Nuno já disse, é muito importante e foi muito debatida. Não há, propriamente, um projecto de saúde mental dentro das prisões com cabeça tronco e membros. Os nossos alunos fizeram um projecto-piloto, nesse sentido, para pôr em desenvolvimento na prisão de Santa Cruz do Bispo — estão em processo para colocá-lo em prática — e foram coisas que, também, nos assustaram porque, de facto, o sistema prisional, que se quer mais reabilitador e inclusivo possível, se calhar, tem algumas características que os levam a exacerbar, ainda mais, as diferenças.
Quanto às/aos trabalhadores/as profissionais do sexo, têm a percepção se, também, já vão com receio na altura de receber tratamentos médicos?
Nuno Madureira: Da mesma forma que a comunidade cigana sente uma distância em relação à comunidade maioritária, em relação aos serviços médicos, todas as comunidades que nós acabamos por abordar na nossa cadeira sentem essa mesma distância. Esse é o elo de ligação entre as comunidades minoritárias que, por serem minoritárias, não têm tanta facilidade em falarem da sua actividade profissional, da sua cultura ou das suas condições de vida. E, dessa forma, acaba por diminuir o acesso aos cuidados de saúde ou dificultar o acesso aos cuidados de saúde. Esta plataforma, a nossa unidade curricular, busca procurar essa empatia, desenvolver essa empatia por esses mesmos grupos, formar os nossos profissionais de saúde para que eles, também, possam mudar esse paradigma. Se não conhecermos as comunidades minoritárias que queremos ajudar e apoiar, nunca deixarão de o ser e nunca terão acesso à saúde como a comunidade maioritária tem. Existe essa diferença. Esse foi o mote que nos fez avançar.
Jorge Hernâni: Saber que existe para saber tratar de forma mais igualitária. Saber que existem para que se possam dar cuidados mais igualitários. Indo ao encontro da pergunta que fez, nos projectos que nos foram apresentados são mesmo dirigidos e direccionados para trabalhadores do sexo, maioritariamente senhoras, (não tanto direccionado para a comunidade trans) mas mais para mulheres cis. Verificou-se, no entanto, que era transversal a estas senhoras que aderiam ao programa assumirem que não diziam ao seu médico de família que eram prostitutas. De facto, isso pode trazer muitos problemas de saúde, porque há necessidade de rastreios mais apertados a alguém que tenha actividade sexual com vários parceiros do que quem não tem. Isso, também, nos limita. Se calhar, não há uma solução perfeita para isto, mas sabemos que existe, sabemos como se faz, já é meio caminho andado.
Vou-lhe dar um exemplo, não fazia ideia que existiam carrinhas móveis que iam ter com as/os trabalhadoras/es, que iam fazer os rastreios gratuitamente, oferecer preservativos, lubrificante, verificar se há algum problema de saúde extra. Há projectos, inclusivamente, que têm ginecologistas que fazem os papanicolau e alguns procedimentos ginecológicos mais básicos, nessas carrinhas, e com referenciação dessa população em geral. E uma coisa aqui, que nós não pegamos, mas que nos suscitou, depois da aula, dúvidas. Pegámos na parte médica, mas a parte da violência, a parte do estigma social e a parte da saúde mental dos trabalhadores do sexo? Todos nós estamos cientes do caso da Gisberta e outros casos semelhantes. Nós não fomos por aí, confesso. Houve alunos, no entanto, que questionaram sobre esses dados e penso que não há dados concretos sobre essas desigualdades.
Sei que não foram por essa via, mas coloco a questão à mesma. E nos acesso da comunidade trans, aos cuidados de saúde? Notam que há, ainda, discriminação ou falta de informação?
Jorge Hernâni: Posso falar da minha prática — não diria que noto discriminação. Acredito que ela exista, mas penso que há muita falta de informação.
Nuno Madureira: Acho que é transversal às comunidades que acabamos por trabalhar na nossa unidade curricular. Quanto à comunidade trans, existe muita pouca informação. Por parte da comunidade médica, existe pouca informação e quase que podemos traçar a linha directa na empatia — no facto de termos menos empatia — e no acesso menor à saúde e saúde informada. Claro que existe um trabalho muito grande a fazer sobre essa comunidade por parte da comunidade médica.
Jorge Hernâni: Está-nos a dar uma excelente sugestão para o ano.
Nuno Madureira: Durante um mês, não dá para tratar todas as temáticas que gostaríamos de tratar e todos os temas são relevantes, de igual forma. Mas sim, acreditamos que, ainda, existe um grande trabalho a fazer na formação médica, principalmente pela comunidade trans em Portugal.
Contaram com Gustavo Carona. Ele esteve em missão, no Sudão e Congo. A vossa unidade curricular conta com essa parte das missões humanitárias, até pela parceria com o Porta Nova. No âmbito dos PALOP, quais acham que são os problemas prementes? Nos países africanos, quando se aborda a questão da saúde e questões inerentes, estas parecem ser indissociáveis da educação da mulher.
Nuno Madureira: O “Porta Nova”, nesse sentido, faz um trabalho extraordinário. A unidade curricular, em conjunto com o “Porta Nova”, faz um trabalho muito importante. Ou seja, com este estágio nos PALOP, fazemos um trabalho formativo aos nossos alunos, à nossa escola, bastante grande porque, estando lá durante 5 semanas em ambiente hospitalar, aprendendo com os profissionais de lá, trocando clinicamente alguns casos, eles aprendem muito dos condicionamentos clínicos que existem lá para tratamento e diagnóstico, mas também muito pelos casos e dificuldades endémicos dos PALOP. O Gustavo Carona é nosso padrinho desde 2018, pelo “Porta Nova”, e tem estado presente, connosco, em todas as ocasiões importantes do projecto. A unidade curricular não deixa de ser uma delas. Falou, connosco, mais no sentido de como gerir situações complicadas em termos de diferenças culturais e religiosas, pelo passado dele em missões humanitárias, tanto no Sudão, como no Congo, ou seja, o enriquecimento dele foi mais nessa óptica. Agora, o enriquecimento clínico e cultural dos PALOP tem sido feito, em grande parte, pelo “Porta Nova”, por esses estágios e essa relação próxima a essas unidades, hospitais, onde os alunos fazem estágios durante o Verão. Agora, com a unidade curricular, acabamos por ajudar nesse sentido. Tivemos uma aula focada nos cuidados de saúde no continente africano, mas tratar e dar informação muito abrangente sobre os países africanos é um bocado complicado, até porque África não se rege, apenas, por uma só questão.
“A economia social também vai ter à economia em saúde. Um médico que não consegue sair da sua bolha e não sabe como está o estado económico do país, se calhar não vai interpretar bem a comunidade na qual exerce as suas funções, em especial na saúde pública ou nos cuidados de saúde primários.“
Jorge Hernâni
Sim, claro. Estava a pensar em problemas endémicos que são transversais como falta de meios e educação das mulheres.
Nuno Madureira: Se um dia quiser perguntar aos nossos voluntários, no “Porta Nova”, e aos nossos alunos em missão, eles, facilmente, respondiam a essa questão de forma bastante genuína. Falando, mais, das nossas missões e menos da unidade curricular, estamos desde 2018 em Bafatá, na Guiné Bissau — eu estive na primeira missão lá, só em 2020 é que não fizemos — e, lá, a relação com a clínica é diferente de cá. Se calhar, valorizam mais o exame físico porque não têm tantos meios complementares de diagnóstico. Acabam por ser limitados, em alguns tratamentos e diagnósticos porque, lá está, não têm acesso às mesmas condições que nós temos cá. Isso acaba por limitar tratamentos e diagnósticos. Existe um entrave muito grande na recuperação, naqueles países, e temos de enriquecer a nossa ligação a esses países. Os nossos alunos vêm transformados de lá, eles olham a clínica, em Portugal, de forma completamente diferente. A malária é um exemplo muito simples: devido às alterações climáticas e à mobilidade cada vez maior das pessoas no mundo, nós podemos ter malária importada em países europeus. É uma realidade — as pessoas são infectadas por malária em países endémicos de malária e viajam de volta para o seu país de origem e são diagnosticadas cá. Como a malária não é endémica em Portugal, por exemplo, se calhar os médicos em Portugal não estão habituados a diagnosticar uma doença como estas. Os nossos estudantes, no entanto, que estiveram durante 15 semanas, em altura de chuvas, na Guiné, por exemplo, viram imensa malária. Estão muito mais conscientes do que podem fazer na altura de diagnóstico ou de pensarem essa doença cá, em Portugal. Isso acaba por ser transformador para eles. Trata-se de um exemplo simples, mas sem dúvida que as melhores pessoas para falarem sobre isso são os nossos voluntários.
Como, aliás, referiu, há imenso para explorar, nesse nível, no continente africano.
Nuno Madureira: Falámos das comunidades durante três semanas e, depois, tivemos uma parte mais abrangente sobre medicina humanitária que pode ser útil para todos os estudantes que, a posteriori, queiram ser, ou não, médicos humanitários, ou seja, que queiram agir humanitariamente, em acções, e serem parte de ONGs, no futuro. Focámos, por exemplo, direitos humanos — que não é um tema muito falado nas escolas médicas, pelo menos em currículos anteriores — economia social, com a professora Susana Peralta, para percebermos a composição social que nos envolve economicamente. Não temos esse tipo de informação, não conseguimos interpretar, socialmente, os doentes que nos aparecem à frente, as condições sociais, as condições de salário e, depois, como isso pode ser limitador para eles. Isso acaba por limitar a nossa acção na forma de lidar com o doente. Tratámos, ainda, com João Goulão, a toxicodependência — um poço de informação e transformador mais na área médica.
Na parte da economia social, penso que será importante o médico perceber a condição social da pessoa que tem à sua frente, porque isso poderá condicionar aquilo a que a pessoa terá direito. Será por aí?
Jorge Hernâni: Sem dúvida
Nuno Madureira: Sim, mas nós, para conseguirmos olhar para o nosso doente como um todo, temos de olhar para o seu papel na sociedade, onde é que se encaixa dentro da sociedade e, a parte económica das pessoas — principalmente agora, com a pandemia — é muito importante para percebermos as condições económicas das famílias que estão connosco nas consultas, para percebermos como agirmos com elas.
Jorge Hernâni: Sou médico de família e posso dizer que lido com o doente muito mais do que com a doença, no seu todo. Posso ter um doente para o qual sei que o medicamento perfeito é este, se o doente não o conseguir comprar, ele deixa de ser perfeito. Se não souber o contexto familiar, social e biopsicossocial, não estou a fazer nada por aquele doente. Em termos económicos, sem dúvida que sim, o melhor medicamento é aquele que o doente vai conseguir ter, senão não estou a fazer nada, estou a tratar a doença e nós — em medicina e em ciência — cada vez mais queremos orientar-nos para a qualidade de vida do doente. Não adianta muito que um doente sobreviva até aos 95 se tiver uma qualidade de vida muito fraca. Adianta, isso sim — e com isto não quero parecer frio — olharmos mais para a capacidade de alargar a vida das pessoas, mas com qualidade. Aquilo que o Nuno disse e muito bem, a economia em saúde é fundamental. A economia social também vai ter à economia em saúde. Um médico que não consegue sair da sua bolha e não sabe como está o estado económico do país, se calhar não vai interpretar bem a comunidade na qual exerce as suas funções, em especial na saúde pública ou nos cuidados de saúde primários.
A esse nível, não acha que há, também, grandes problemas de comunicação naquilo a que os pacientes podem ter acesso, principalmente a nível burocrático?
Jorge Hernâni: Sem dúvida, participei num projecto no Bairro de Santa Tecla sobre literacia em saúde, relacionada com a Covid-19. Posso-lhe dizer estas três coisas: uma, os doentes não são todos iguais; duas, quanto mais idosos, mais difícil é que percebam a linguagem que nós aplicamos e três, quanto menos literacia tiverem, menos literacia em saúde parecem ter. O problema é que vivemos num país cada vez mais literado, mas com literacia em saúde muito baixa. Apesar da dados que nos dizem o contrário, os doentes não sabem a que recorrer nem ao que vão recorrer. E cabe-nos a nós, principalmente no tempo das fake news — e então as fake news em saúde nem se fala. Cabe-nos a nós todos, enquanto profissionais de saúde — enfermeiros, técnicos, assistentes — cabe-nos a nós todos sermos agentes de saúde, para combatermos as fake news em saúde. E isso pode mitigar essas falhas. O sistema não é perfeito, mas também não é tão mau como se pinta. É muito melhor do que muitos que temos no mundo todo. António Arnaut teve aqui um grande papel e eu também diria ao Costa — aguenta lá o SNS — tal como disse antes de falecer.
Nuno Madureira: Antes de finalizar, gostaria de frisar só uma coisa. Esta unidade curricular foi desenhada para ser uma plataforma de diálogo, para ser uma plataforma de informação dos médicos e dos futuros médicos com as comunidades minoritárias que identificámos neste primeiro ano. Definimos serem estas as primeiras mas, nos próximos, poderão ser muitas outras e, claro, estamos abertas a todas as propostas. O importante de termos estas plataformas reguladas e com um ambiente de crescimento, das duas partes, é cada vez mais importante. Senti, nesta unidade curricular, a boa vontade dos estudantes que estiveram connosco de forma empenhadíssima. Nunca, antes, tinha pensado que os estudantes estivessem tão motivados para este tipo de unidades curriculares. Mostra que o futuro é mesmo esse — o debate da diferença em locais e plataformas adequadas, com boa vontade das duas partes para a discussão e para a informação. Isto, para chegarmos a uma sociedade mais multicultural, mas que se aceita, conhece e quer ser multicultural — não é multicultural por obrigação. A importância desta unidade curricular é mesmo essa — desenvolver o futuro nesse sentido.