Medidas incompreensíveis levantam questões inconcebíveis
A administração da vacina da AstraZeneca foi suspensa em Portugal pelo Infarmed, em articulação com a DGS. Tal aconteceu ao mesmo tempo que o movimento anti-vaxxer cresce a galope, tal como teorias de politização das nossas instituições regulatórias e máximas da saúde. Esperava-se das mesmas que agissem segundo a mais recente evidência científica, fazendo um cálculo de benefício-risco assertivo. Mais uma vez, falharam-nos. Aos cidadãos, aos profissionais de saúde e à indústria farmacêutica.
Ao emitirem um comunicado conjunto, apresentaram as duas instituições como concordantes com a suspensão das inoculações, citando “o princípio da precaução de saúde pública”. Esta decisão é inconcebível por várias razões, mas principalmente porque foi tomada antes do PRAC da EMA (Agência Europeia do Medicamento) estabelecer uma relação de causalidade entre fenómenos tromboembólicos e a toma da vacina. Hoje essa decisão foi novamente validada pela agência em conferência de imprensa.
Os dados que figuram o debate acerca da suspensão reportam à vacinação no Reino Unido, onde ocorreu uma prevalência de 27 destes fenómenos em 9,7 milhões de vacinas AstraZeneca. Comparando, foram reportados 24 casos com a vacina da Pfizer em 10,4 milhões de inoculações. Contudo, nenhuma suspensão foi feita à vacina da Pfizer. Importa explicar também que a prevalência de fenómenos tromboembólicos na população geral é superior à da população vacinada. Ainda, estas ocorrências são mais comuns em analgésicos, anti-inflamatórios e contraceptivos orais, fármacos que consumimos diariamente.
Parte do perigo de fazer uma suspensão sem evidência passa por ser muito complicado reverter a mesma suspensão com suporte de dados. Pior, é literalmente ignorar que um processo de vacinação depende diretamente da confiança da população geral na vacina. Esta decisão fez um enormíssimo favor à desconfiança nas vacinas, e aos movimentos que ativamente tentam baixar o nível de confiança da sociedade civil nas suas instituições de saúde, já sendo possível ler e ouvir vários políticos eurocéticos a martelar teorias de conspiração política da parte da União Europeia contra a AstraZeneca.
As nossas agências têm uma responsabilidade acrescida de tomar decisões baseadas em dados e evidência. É expectável que o sector político não seja beneficiado em termos de estratégia com estas decisões, mas é incumbido ao Infarmed e à DGS que sejam uma fonte de idoneidade impenetrável. É inconcebível que governos e Estados que tenham tomado uma posição extremamente cética em relação a confinamentos para provocar um baixar de casos, estejam hoje ultra-cautelosos acerca de fenómenos sem causalidade comprovada com o processo de vacinação. Não pode ser pedido à sociedade civil que distinga com facilidade uma situação de correlação com uma de causalidade, mas é exigido às duas instituições que não confundam os dois.
As ramificações políticas estão a ser centradas na Comissão Europeia, e mal, a meu ver. Mesmo sendo absolutamente comum os Estados Membros sacudirem responsabilidade para cima, a suspensão não foi uma decisão europeia, mas sim dos governos de 21 países, 19 dos quais europeus. Existem várias críticas a fazer ao COVAX e à Comissão, nomeadamente ao privilegiar a vacina AstraZeneca por se ter considerado que uma tecnologia mais comum e com menores dificuldades de armazenamento e de distribuição seria uma melhor aposta, e que está hoje a ser absolutamente minada em termos de confiança na sua segurança e eficácia. Sou até receptiva às questões acerca do contrato com a farmacêutica, onde a Comissão apostou em poupar dinheiro e pressionar a AstraZeneca como um grande bloco. Claro que bastou países oferecerem quase o dobro do preço por cada vacina para ultrapassarem a UE na ordem de cumprimento de lotes.
O meu desejo é que o esforço coletivo de vacinação não seja irremediavelmente afetado, e principalmente que a ciência prevaleça numa Europa marcada por movimentos negacionistas que levaram ao ressurgimento de doenças como o sarampo. Termino com duas verdades inamovíveis: sem uma compra de vacinas conjunta os países mais pobres seriam esmagados pelos países mais ricos, vacinas essas que são as mais escrutinadas e seguras das últimas décadas.