“MEIA RIBA KALXA” de Tristany é um relato de auto-descoberta confessional
Como é que sabemos quando estamos perante boa arte? Importa primeiro definir o que é arte; ou então encontrar uma definição já pensada: expressão de um ideal estético através de uma actividade criativa. Mas o que é para aqueles que não vivem num dicionário? São obras, formas e peças que ultrapassam a sua dimensão “terrena” e se alojam na nossa mente, que nos dizem algo. Podemos saber instantaneamente o que é, podemos não saber exactamente ou até podemos vir a perceber com o passar do tempo. Mas a boa arte é aquela que fala connosco. Para Tristany, essa arte é a sua música.
Os primeiros passos de João Pascoal foram com o grupo Monte Real e um gélido banger local, “Noites de Mem Martins”, em que Tristany Time Old cospe versos sobre a realidade à sua volta sob uma batida reminiscente de horrorcore. Cinco anos e um EP depois, Tristany deixa o Time Told no passado e a sua entrega musical altera-se: continuamos a ouvir barras e raízes no hip hop, mas o canto nunca está longe. No entanto, há uma constante: a sua mensagem, e Tristany mantém-se fiel ao mote dado pelas suas palavras anteriores. MEIA RIBA KALXA, o seu álbum de estreia, é um espelho da sua realidade, um olhar atento sobre o seu percurso e o ambiente que o moldou, guiado por uma estética sonora distinta dos seus contemporâneos.
Essa singularidade musical é algo que Tristany demonstra desde o início do projecto. Depois de um curto hino aos “heróis da linha”, “ONDA CIVIK ..” leva-nos à boleia da sua batida seca e polifónica que se transforma numa exploração psicadélica, dispersando do que veio antes, mas nunca descurando uma progressão estruturada e perfeitamente sequencial, simultaneamente atmosférica e profunda. De forma semelhante mas numa faixa à parte, “AMOR DE JINGA ..” também demonstra a facilidade que Tristany tem em conjugar momentos distintos: um sincero clamar de desespero apaixonado desagua numa epifania guiada por coros proféticos aliados a uma batida trap. Transparece uma ambição em que a música seja mais do que uma sucessão de estrofes e refrões, mais desafiante e pessoal.
Há uma frescura nos temas que compõem este projecto. “NAXER DU SOL ..” é um dos destaques do final do álbum. Apesar de começar sedutora e descontraída, torna-se mais intensa e dançável com o decorrer do tema, com muita coisa a acontecer ao mesmo tempo. No entanto, há um fio condutor instrumental que serve de base e garante que não perdemos o fio à meada. Já “DAMÉ FUEGO SE É LAGOSTA ..” é adrenalina de uma ponta à outra, com “alarmes” infernais que constantemente se fazem ouvir. São temas que provam a versatilidade de Tristany, adequando a sua voz a todo o tipo de instrumentais.
Mas se a música de MEIA RIBA KALXA tem muito que se lhe diga, a parte conceptual não lhe fica nada atrás. A meia por cima das calças que dá título ao álbum é uma demonstração visual que transcende o seu plano estético. Em “acliclas”, Tristany e convidados exploram o consumismo a que tantos se entregam, aludindo a uma falsificação da marca Adidas. O bombo distorcido até ao infinito e o instrumental agudo “escandaloso” são um bom complemento às barras de Julinho KSD e Blade, complementadas pelas melodias tresloucadas de Tristany. No final, o funaná de Chullage contrasta com a parte mais ameaçadora que a antecede, concluindo esta celebração agridoce do capitalismo e do culto às aparências.
Muitas vezes essa aparência é de combate. Ou, como Sam the Kid disse em tempos: “a cara podre é o escudo que faz a distância”. É esse o mote de “RAPEPAZ ..”, um dos destaques do álbum. As teclas quentes incitam-nos a descobrir a música, palco para Tristany desabafar e ser honesto, mostrando a sua fragilidade interna e as dúvidas que o assolam. Mas é sol de pouca dura, a “cara podre” volta com a parte mais “militar”. “Amar não é para real g’s”, ouvimo-lo dizer, recusando o calor do amor pelo frio calculismo de uma atitude bélica de um mundo que o desaponta e o recusa: “A culpa não é minha, meteram me aqui / Esta é a minha prisão, nunca vi grades mas senti”.
Essa atitude atinge o seu auge em “TIRANTE ..”. Sentimos o ambiente industrial e sepulcral que se instala, com a voz de Tristany distorcida e ecoante a acrescentar mais uma camada dramática. Na outra face da moeda, a parte mais pesada da música, o tirante ganha voz. O flow arfado e fantasmagórico transparece o desespero que leva a uma vida de crime, muitas vezes a única hipótese para seguir em frente. “Vida de street é só passagem” ouve-se ao longo de MEIA RIBA KALXA, uma mensagem que em “TIRANTE ..” parece passar ao lado. O gasto excessivo e a busca desenfreada de estatuto levam muitas vezes a desfechos pesarosos. O dinheiro está no centro da discussão e MEIA RIBA KALXA denota uma passagem de um jovem adolescente à idade adulta, com a noção de que nem tudo é preto e branco, mas muito é verde no bolso.
A música que conclui o álbum é a prova disso. Depois de Chullage nos presentear com poesia acutilante em “honra” ao fascínio monetário, “VERDE 2 ..” fecha o álbum de forma íntima. A batida é a mais tradicional de todo o projecto, assim como as barras, e o flow é ternurento e tristonho ao mesmo tempo. Isto não é caso isolado — a doce homenagem “MÔ KASSULA ..” ou a emotiva “O MENINU KE BRINKAVA COM BONEKAS ..” mostram esta fusão de sentimentos. Mas aqui, Tristany soa especialmente confessional. “Mas porque é que te relacionas melhor com o branco?”, pergunta válida de alguém que cada vez mais interioriza que quando o cifrão sorri, não é para todos. Essa é uma mensagem universal e ao alcance da percepção de qualquer um de nós.
Como é que sabemos quando estamos perante boa arte? Quando o artista fala directamente connosco. Quando a sua obra o transcende sem nunca o ofuscar e quando a sua experiência se torna o elo de ligação entre duas pessoas que provavelmente nunca se irão conhecer. É esse o poder da arte, e é esse o poder de Tristany. MEIA RIBA KALXA é um projecto denso, complexo e difícil de desvendar através de audições casuais. Mas a insistência é recompensada por este relato de auto-descoberta que nos diz tanto a nós como ao seu autor.