Mensagem de Lisboa dá a conhecer histórias esquecidas ou pouco faladas da área metropolitana da capital
Lisboa alberga parte significativa das sedes dos grandes órgãos de comunicação social nacionais, mas dentro da Área Metropolitana de Lisboa ainda há muitas histórias para conhecer que, não pertencendo à actualidade política e económica em geral, ainda escapam aos jornais tradicionais falando-se, por isso mesmo, em desertos noticiosos. Como forma de colmatar estes mesmos desertos noticiosos, a Mensagem de Lisboa, jornal local lisboeta que se dedica a contar as histórias da área metropolitana da capital, deu vida ao “Projecto Narrativas“, através do European Journalism Fund, e deslocou a sua sede até Algueirão-Mem Martins (Sintra), Chelas (Lisboa) e Casal da Boba (Amadora), de forma a dar espaço às vozes e às histórias ainda por ouvir, de braço dado com o jornalismo comunitário, com todo o rigor que o código deontológico da profissão exige.
A jornalista Catarina Carvalho, também fundadora da Mensagem de Lisboa, explicou à Comunidade Cultura e Arte (CCA) que “quando estamos a falar de três milhões de pessoas e de poucos órgãos de comunicação social, estamos a falar, obviamente, de zonas muito pouco representadas“, referiu. Acrescentou ainda que “temos poucas histórias contadas, mas a ideia aqui não é só a questão de serem um deserto de notícias institucionais, é a ideia de serem um deserto de notícias sociais ou de notícias que são feitas pelas pessoas. Algumas notícias são feitas pelas câmaras municipais, pelas instituições, mas continua a haver muito essa ideia de uma informação muito institucional“, explicou.
Dora Santos Silva, professora e investigadora da área da comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e, além disso, integrante do conselho editorial da Mensagem de Lisboa, referiu à CCA que “não só há falta de cobertura noticiosa, como a que há leva, por vezes, a uma percepção errada de determinadas zonas, fruto da representação mediática que não corresponde de forma equilibrada à realidade. Se, por exemplo, a maior parte das notícias sobre uma determinada zona periférica de Lisboa é sobre criminalidade e nada se diz sobre o tecido cultural ou qualquer outra ação positiva que esteja a decorrer, então a percepção da população em geral é a de que é uma área problemática, mesmo que o número de notícias não tenha sido assim tão elevado“, enfatizou.
Nuno Varela, da Kriativu, Associação juvenil em Chelas, e Rodrigo Faria, do grupo cultural Unidigrazz, cujas sedes acolheram a Mensagem de Lisboa, salientaram logo à CCA esta conotação noticiosa negativa do território, indo ao encontro do abordado por Dora Santos Silva. Rodrigo Faria chega mesmo a dizer que “todos os dias quero passar a imagem positiva do que se vive aqui porque, quanto à negativa, já a comunicação social vende“, expõe. “Todos os dias, a comunicação social enfatiza algo negativo sobre a periferia criando, depois, imaginários que levam as pessoas a não se interessarem por estes sítios. As pessoas têm medo de vir de comboio até Sintra ou Mem Martins. As pessoas têm medo de andar de comboio, têm medo de andar na rua devido a um imaginário que foi criado durante muitos anos“, afirma. E continua: “Agora queremos criar uma contra narrativa que evidencie as coisas mais positivas, as experiências mais positivas que temos aqui, num sítio onde há uma imensidão de gente, onde há uma diversidade de culturas, diversidade de pessoas, que traga o que de positivo também nós temos.” Conclui que “há projectos de desporto, há projectos de referência a nível cultural e que não são comunicados, portanto, tentámos numa semana, com a Mensagem de Lisboa, transmitir o que em anos não foi transmitido“, revela.
Nuno Varela é da mesma opinião e disse à CCA que “estamos a falar de territórios que, na maior parte das vezes, não são comunicados da forma mais correcta pelos media“. E continuou dizendo que “muitas das notícias que vemos na internet têm uma conotação negativa e um jornal comunitário que vise potenciar talentos locais, gastronomia, negócios, vem ajudar e dar uma nova visão e impacto aos territórios que não estão acostumados a ter estas notícias positivas“.
Por essa mesma razão, a deslocação da Mensagem de Lisboa até ao espaço da Kriativu acabou por impulsionar o desenvolvimento de um jornal comunitário local. Nuno Varela explicou como nasceu a ideia: “Foi feita uma candidatura a uma linha de apoio à câmara municipal de Lisboa e coincidiu ser na mesma altura — parece que as energias se cruzaram — do arranque desse projecto comunitário que ajudou bastante. Começámos o projecto um bocadinho às cegas, com algumas luzes sobre o que seria uma plataforma comunitária, mas esta parceria com a Mensagem de Lisboa ajudou desde a criação de conteúdos, estrutura de equipa, até ao que era necessário numa redacção, para um jornal comunitário“, evidenciou Nuno Varela.
Para Nuno, contar estas histórias foi uma experiência bastante boa porque “fez as pessoas olharem para as próprias vidas e pensarem que elas próprias têm histórias interessantes que poderiam contar. Isto do jornalismo não é vivido só de grandes personalidades, não é vivido só de actores e músicos. Muitas pessoas, no seu percurso de vida, têm histórias interessantes que se foram bem contadas dão conteúdos bastante enriquecedores. Elas próprias começam a pensar no seu network, nas pessoas que têm à volta, quem seria uma boa pessoa para contar uma história e, a partir daí, criarem-se outros conteúdos por pessoas ou histórias de vida que achem interessantes“, revelou.
Rodrigo Faria explica que a Unidigrazz trata-se de “um movimento iniciado por artistas locais“, com a “necessidade de mostrar o seu talento cultural.” Refere que se juntou ao colectivo “em 2020, 2021, mais ao menos, dois, três anos depois de iniciar, numa necessidade de construirmos projectos“, frisou. Continua que “quando entrei foi mais no sentido, também, de tentar encontrar uma forma de formalizar, burocratizar um pouco o processo, e trago essa parte mais burocrática, no sentido de nos relacionarmos com instituições, compreender de que forma nos podemos evidenciar, mostrar o nosso trabalho. A minha função é essa, gestão e produção dos projectos, das iniciativas que também vamos tendo“, declarou. Além da sua função no colectivo, Rodrigo é, também, assistente social. Como explicou, sente, por essa razão, um peso e responsabilidade maiores. Nas suas palavras, “por me ter conseguido formar numa área que escolhi. Por ter nascido em Algueirão-Mem Martins e por ter sentido, desde pequeno, a necessidade de fazer a diferença no local onde nasci, pronto.” Diz ainda que “na entrevista que fizemos com a Mensagem de Lisboa, referimos que queremos mudar o mundo a partir da nossa freguesia. Sentimos a responsabilidade de mudar a partir da nossa rua, do nosso bairro, do espaço onde vivemos, onde convivemos, onde vemos a nossa família crescer. Sinto muito essa responsabilidade“, revela.
Dora Santos Silva explicou à CCA que “é muito interessante constatar que nos grupos de foco que fizemos com os jovens adultos que trabalharam neste projeto, muitos consideraram que o jornalismo estava ‘desatualizado’. Isto pode parecer um paradoxo, mas quando percebemos que eles têm acesso a mais informação sobre o que se passa no local onde vivem a partir das redes sociais de influenciadores dessas comunidades do que nos meios de comunicação social, então o paradoxo é mesmo, sim, um grande alerta para o jornalismo“, alertou.
A investigadora salientou ainda que defende “que a definição de desertos noticiosos não deve basear-se apenas na existência de meios de comunicação social num determinado território, mas sim na representatividade da cobertura noticiosa dessa zona. E é essa premissa que está na base do Projeto Narrativas. Mem-Martins, a 30 minutos de comboio da cidade de Lisboa, pode ser considerado um deserto noticioso porque não se dá voz a quem lá vive, às fantásticas iniciativas culturais e sociais que a Mensagem agora teve oportunidade de mostrar, ou mesmo aos problemas que extravasam crimes ou o IC19“, assume.
Conclui ainda que “os desertos noticiosos não são, obviamente, um problema apenas das periferias. Grande parte dos territórios fora dos grandes centros urbanos não só não têm meios de comunicação social locais (ou quando têm não fazem, na verdade, jornalismo local) como são cobertos pelos media de forma muito superficial ou surgem quando são palco, por exemplo, de uma conferência de imprensa de um partido político (e a notícia é de âmbito nacional e não local)“, apontou.
Catarina Carvalho salientou a boa “repercussão” do projecto: “Os nossos leitores estão a adorar, são histórias que eles não conheciam e que passaram a conhecer por causa disto [Projecto Narrativas]. Por outro lado, na ligação das pessoas dessas zonas também, houve uma certa efervescência nas redes sociais. Afinal, há tantas histórias aqui para contar e nós não sabíamos, de ambos os lados. E muito boa a reacção e o balanço é muito bom, estamos muito contentes“.
Recordou também que “falamos ‘jornalismo comunitário’ porque esse jornalismo é feito pelas pessoas de lá, mas também é próximo das pessoas de lá. Aquilo que fazemos, sempre, questão de dizer na Mensagem é que não se perde em profissionalização, ou seja, não se perde naquilo que o jornalismo tem de regras deontológicas. Esse jornalismo que fazemos quando vamos a esses sítios, ou quando já normalmente os cobrimos, fazemos esse jornalismo com todo o rigor, não desrespeitando nenhuma regra jornalística. É isso que estamos a transmitir às pessoas que têm trabalhado connosco nestas zonas“, enfatizou.
Catarina Carvalho contou ainda à CCA que o gatilho para o “Projecto Narrativas” foi, “é preciso dizê-lo, um outro projecto que fizemos no Bairro do Rego, com a “Associação Passa Sabi”, e que durou um ano. Foi um trabalho um pouco diferente, mais de literacia mediática, mais de falar com as pessoas da zona e ter, connosco, a trabalhar, uma série de miúdos que durante um ano trabalharam com o nosso repórter Álvaro Filho, em algumas histórias do bairro. Esse projecto foi feito no ano passado e acabou no final deste ano, no final de 2023. Foi um projecto integrado no fundo Active Citizens, cidadãos activos, gerido pela Fundação Gulbenkien e a Fundação Bissaia Barreto, em Lisboa. Fizemos esse projecto e foi daí que nasceu este gatilho. Já tínhamos feito um concurso a outras bolsas e, quando esta apareceu, que se chama mesmo Local Media for Democracy, achámos que era o ideal para concorrer. De facto, foi muito bem acolhido“. Mas não deixa de frisar: “O gatilho, no fundo, é já o trabalho habitual da Mensagem de Lisboa que é de ir onde, normalmente, não se vai na cidade“.