MEO Kalorama (dia 2): do indie dos English Teacher à festa imersiva dos LCD Soundsystem, um alinhamento de ouro
Candidato a um dos dias musicalmente mais marcantes no panorama dos festivais portugueses deste ano, o segundo capítulo do MEO Kalorama acolheu o património vivo que é a fervilhante pista de dança dos LCD Soundsystem. Isso teria bastado. Como bónus, assistimos a um dos melhores concertos de 2024 no mais pequeno palco do festival, com os English Teacher a apresentarem-se como uma das mais promissoras bandas de indie rock emotivo do nosso tempo, na senda dos Black Country, New Road. A oportunidade de ouvir back-to-back as obras-primas dos Death Cab For Cutie e dos The Postal Service foi cereja no topo do bolo, num cartaz absolutamente repleto de pontos de interesse desde a tarde até madrugada. Eram muitos os caminhos possíveis, um destino comum: música emotiva e um sentimento colectivo de alegria e de festa. Um sorriso a morar-nos nos lábios praticamente em contínuo.
Começámos a tarde com a agradável surpresa que foi conhecer pela primeira vez a música de Emmy Curl, nome artístico de Catarina Miranda, que encontrou no Palco San Miguel uma casa magicamente apropriada para o seu espectáculo de “solar punk”, como definiu o seu género musical. A luz a entrar rasgada por alguns intervalos na cobertura lateral do palco remetia para uma floresta; Emmy Curl era a fada, de expressivas asas, rodeada de flores, e convocando no seu equipamento electrónico uma atmosfera estranhamente psicadélica e intensa. A partir de um repertório sónico tradicional e nortenho, a artista reconstrói, sozinha em palco, propulsivas paisagens electrónicas. Talvez poucas coisas resumam tão bem o concerto como quando Emmy partilha a história de um dos temas: “peguei num poema do meu bisavô e transformei-o em tecno-transmontano, ou lá o que isto é”. Paisagens cativantes e irresistíveis que encontrarão facilmente palco em muitos festivais de trance e tecno por esse mundo fora, recorrendo a raízes musicais muito localizadas e queridas ao ouvido português. “Arriba monte!”.
Terá sido talvez o momento mais agradável e descomprometido de toda a nossa fruição do Kalorama até ao momento: o pôr do sol na companhia de Olivia Dean foi de um calor humano tão bonito, que partia da atitude generosa e vulnerável de uma artista que se apresentou humilde diante de um público que lhe devolveu tanto carinho. De vestido rosa demasiado comprido, que passou o tempo a puxar para cima, cantou sobre a experiência de se ser “a little bit messy”, abrançando a imperfeição de sorriso nos lábios. Uma pop soul de fruição leve, sempre interpretada com enorme competência. Foi uma estreia em Lisboa verdadeiramente luminosa, ainda mais “solar” que o punk de Emmy Curl, em que tocou piano, guitarra, pandeireta, e até chocalhou uma banana, mostrando sempre um saudável sentido de humor. Olivia Dean teria sido especialmente bem programada para a noite de Raye (que será hoje), com quem a sua música parece fazer alguma ponte em alguns dos temas (como por exemplo em “Dive”). Destaque para “Ufo”, “Carmen” e “Be My Own Boyfriend”. Foi um concerto relaxado e bem passado, tendo o público abraçado a experiência e a artista.
Não foi preciso sair mais cedo do concerto de Olivia para chegarmos a tempo de assegurar um lugar na segunda fila do Palco Lisboa, cuja audiência se compôs ao longo da meia hora seguinte até ao começo do espectáculo. Os English Teacher já o teriam merecido de qualquer forma, pelo brilhante álbum de estreia que lançaram este ano (“This Could Be Texas”; vale a pena fazer uma pausa na leitura deste artigo para o pôr a tocar!). Mas, merecimentos à parte, o concerto dos English Teacher foi acima de tudo uma grande recompensa para todos os que escolheram descobri-los no seu primeiro concerto em Lisboa, no MEO Kalorama.
Vamos chutar palavras: intenso, dinâmico, magnético, virtuoso e refrescante. O indie rock dos English Teacher faz-nos lembrar, principalmente nos temas mais lentos e despidos, o estilo de composição dos Black Country, New Road; é refrescante que existam mais bandas que procurem lugares semelhantes, porque não há suficiente rock com sabor fresco e jovem a procurar a delicadeza de arpeggios simples e absurdamente emotivos sobre arranjos partidos e complexos que desconstroem as expectativas. Música feita a partir de um virtuosismo não apenas na performance, mas também no ouvido – música apaixonada, que procura esse lugar de êxtase mesmo nas suas explorações mais (aparentemente) minimalistas. Mas a banda apresenta-se com uma personalidade diferente, substancialmente sustentada na vocalista Lily Fontaine – é aqui que aplicamos a palavra magnética. Quer quando canta, quer quando declama as interpelativas passagens de spoken word, quer mesmo quando apenas contempla o público ou a atmosfera à sua volta, Fontaine tem um si uma centelha vibrante semelhante à de um peixe na água – que talento bonito, vocação a ser exercida. Mas não nos passam ao lado os olhares entre o baterista e a vocalista, a coordenação, o contacto e a sensibilidade entre alguns dos membros da banda. Há aqui material colectivo para continuarem a ser férteis na arte de fazer coisas bonitas.
E para além da intensidade rock, houve espaço para os quase silêncios, e para – num alinhamento de treze canções – umas três ou quatro canções sem bateria, que soaram talvez mais intensas que quase todas as outras. Quantas bandas rock têm a coragem de, num festival em que poucos os conhecem, tocarem muitas das suas canções contemplativas, como “Mastermind Specialism”? Esta é a coragem de se saber o que se tem para oferecer de melhor. Aplaudidos com imenso carinho pela plateia, que foi ao rubro durante a electrizante “Nearly Daffodils”, terminam o concerto com um cover (inédito?) de “New York, I Love You but You’re Bringing Me Down”, inspirados pela performance dos LCD Soundsystem a que assistiram na véspera em Madrid. O cover, interpretado brilhantemente, caiu-lhes que nem uma luva, e demonstrou a influência que a banda americana continua a ter na paisagem alternativa de hoje. Terá sido até uma interpretação mais emotiva que a dos próprios americanos horas depois…? Permitimo-nos o sacrilégio; foi a nossa impressão. Concerto para ficar gravado no coração.
Foi difícil – impossível – furar a densa plateia diante de Jungle. Já noutras ocasiões passadas se tem vindo a provar o carinho do público português por esta banda britânica que explora o funk e o disco num território de electrónica muito processada. O concerto, a que assistimos de longe, e não sob as melhores condições de som, segue como uma festa sem grandes picos de êxtase, em que a fruição vale mais do que o destino. Arriscamo-nos a dizer que, na forma, há algo de semelhante na construção das músicas ao vivo dos Jungle e dos LCD Soundsystem – o que nos parece diferente, e aqui perdoem-nos os fãs de Jungle, é a quantidade de alma metida nesse processo. Há uma vaga sensação a fórmula pouco sumarenta que limita a amplitude do entusiasmo na música dos Jungle, e particularmente ao vivo – opinião que não será a da maior parte do público presente na Bela Vista, que se balançava e respondia efusivamente aos incentivos da banda. Atrevemo-nos a responsabilizar (parcialmente) por esta impressão a nossa experiência: a distância ao palco e a qualidade de som aquém da ideal (responsabilidade do vento?).
Dali partimos para o cimo da colina, para mergulhar num terreno embebido de nostalgia, no Palco San Miguel. Chegava a hora da antecipada oportunidade de ouvir na íntegra dois dos mais acarinhados álbuns de música alternativa do começo do século, “Transatlanticism” no campo do indie rock, e “Give Up” no do indie pop e da indietronica. Não é todos os dias que uma banda se dispõe a olhar para trás e a encontrar no legado de álbuns específicos uma oportunidade para os reproduzir ao vivo, na mesma ordem, diante do público que os amou ao longo de anos, e continuou a encontrar um sentido neles. Foi isso que o vocalista dos Death Cab For Cutie e dos The Postal Service, Ben Gibbard, partilhou com a plateia: foi o amor do público por estes discos, e o que continuou a ser bebido ao longo destas duas décadas, que torna relevante esta digressão tão especial. E era tão engraçado ver na plateia também pessoas mais novas, pré-adolescentes a cantarolarem canções que terão acompanhado o seu crescimento, na banda sonora caseira dos seus pais indies.
Foram dois concertos bem diferentes no estilo, mas semelhantes num atributo: a excelente qualidade de som tornava-se quase assombrosa, com a voz de Gibbard e a sua guitarra a soarem especialmente nítidas no conjunto da banda. Parecia que estávamos de fones. No primeiro concerto, dos Death Cab For Cutie, o clima foi-se modulando à velocidade e aos decibéis de cada tema, num território frequentemente mais sério e contemplativo que o do concerto dos The Postal Service, que se seguiu, após uma pausa de quinze minutos entre os espectáculos. Se no primeiro a banda se apresenta vestida de preto, na segunda surgem de branco. O destaque natural do primeiro concerto – para estes ouvidos – foi a faixa título, “Transatlanticism”, cuja guitarra parece falar coisas mais verdadeiras e fundamentais que todas as palavras da canção, já de si tão bonitas. Houve lágrimas à espreita. Também o final do concerto fechou de forma emotiva o espectáculo (e o disco), com “We Looked Like Giants” e o exercício acústico e contrastantemente despido de “A Lack of Color”.
Já a performance de “Give Up”, dos The Postal Service, contraria essa “lack of color” com um excesso da mesma: foi electrizante desde os primeiros minutos. Contando com uma palete sónica divertida – talvez até com algo de infantil em diversos momentos, no melhor dos sentidos – a banda pôs a plateia a saltitar e a sorrir ao longo do concerto, bem como a cantar as passagens mais “repetitivas” e icónicas dos seus refrões. A presença e o contributo de Jenny Lewis, principalmente quando assumia o microfone e oferecia a sua voz doce e cristalina, foi especialmente aplaudida pela plateia. “Give Up” afirmou-se, ao vivo, como um álbum que é efectivamente especial, e que talvez transpire uma frescura que torna a percepção do seu som como actual. Graças à lenta e progressiva debandada de parte da plateia para tentar arranjar o melhor lugar possível no concerto dos cabeças-de-cartaz da noite, tornou-se possível encontrar – para quem escolheu permanecer com os The Postal Service, enfeitiçado por aquela alegria contagiante que atravessa mesmo letras mais melancólicas e agridoces – uma outra folga para se colocar os pés dançantes. “We Will Become Silhouettes” foi gloriosa; e “Natural Anthem” encheu de uma explosão de cor o Palco San Miguel, num psicadelismo contagiante. Que alegria, e que oportunidade.
Descemos a colina ainda ao som de uma espécie de encore em que as duas formações se uniram para um cover de “Enjoy the Silence”, dos Depeche Mode. Não pudemos adiar mais o nosso necessário posicionamento no concerto dos LCD Soundsystem, a cinco minutos do começo deste concerto. Já não foi fácil encontrar um lugar em que pudéssemos sentirmo-nos “dentro do concerto” em todas as suas dimensões (visual, social e sonicamente). As impressões sobre a noite construída pelos LCD Soundsystem não são, portanto, uma reportagem fundada em grande informação visual, tendo em conta que quase nenhuma da acção no palco nos era acessível visualmente; excepto o conteúdo selecionado para os ecrãs gigantes nas laterais, que permitem ao público ir provando grandes planos (verticais) dos músicos, mas nem sempre o que queríamos ver a cada momento (como é óbvio, procuramos todos informação diferente para sustentar pormenores que estamos a ouvir).
O concerto dos LCD Soundsystem tem uma qualidade qualquer abstracta, na forma como constrói as suas intricadas malhas sónicas e conduz os ouvidos – e os corpos – a esses lugares em construção. É espantoso lembrarmo-nos, a cada momento, que todo aquele som está a ser tocado ao vivo, por uma banda de quase dez músicos, a contribuir cada um com os seus ângulos. É claro que, por cima dessa densa arborização sónica, se passeia o mágico James Murphy, cuja capacidade e expressividade vocal não deixa de nos surpreender. Reside naquela atitude simultaneamente descomprometida e investida um eixo focal de cada tema, dotando de um mapa orientado o trilho em que nos poderíamos perder de outra forma, deixando os níveis de abstracção descontrolar-se ao ponto de prejudicar a própria fruição do concerto.
Dizer que foi uma festa é um understatement, e ao mesmo tempo uma forma inapropriada de descrever o que se passa num concerto dos LCD Soundsystem. Há como que uma transposição no tempo e no espaço para um lugar que gostávamos que existisse à mão de semear a cada momento. Ocorre-nos a certa altura imaginar uma discoteca que só passasse LCD Soundsystem, toda a noite e todas as noites. Com a sua linguagem própria, repetitiva e tão fértil. É como se cada tema, no decorrer dos seus longos minutos (foram apenas doze, ao longo de hora e meia), fosse um pequeno universo em que nos encontramos e nos reinventamos. É difícil, depois de introduzidos os diferentes elementos, distinguirmos os contributos de cada músico: a mancha sónica, pautada por um ritmo contagiante, monta o palco em que o corpo dança, sintonizado naquela energia tão frenética e cheia de possibilidades. A minha opinião (disclaimer: como fã da banda) será sempre subjectiva, mas nenhum momento me emociona tanto como “Home”. O mítico final com “All My Friends” coloca toda a plateia aos saltos, e pela primeira vez as câmaras apontam para o público. Somos nós, em êxtase, aos saltos, nos ecrãs gigantes. Justa e emotiva reflexão de um concerto que é também construído pela forma como cada um interpreta, e dança, aquela pista tão intricada e especial.
A noite seguiu com Folamour, o artista convocado para o lugar dos The Smile, que tiveram de cancelar a sua presença por motivos de saúde (uma substituição que não terá feito muito sentido). Já não houve energia para por lá passarmos. A seguir a LCD Soundsystem fica apenas um sorriso largo, e uma sensação vaga de realização, de quem acabou de criar alguma coisa muito bonita; como se não fôssemos apenas ouvintes e tivéssemos sido nós a inventar alguma coisa bela naquele espaço musical. Mais um dia musicalmente tão repleto no MEO Kalorama, e do qual saímos ainda mais felizes do que na véspera. Hoje a noite encerra os concertos de Raye e Burna Boy, havendo ainda uma vasta e diversa undercard a explorar com Overmono, Yves Tumor e Ana Moura, a título de exemplo.