Entrevista. Ricardo Araújo Pereira: “Mesmo quando não estão rigorosamente traduzidas e com alguns erros, há traduções da Bíblia que produzem efeito cultural”

Encontramos o humorista Ricardo Araújo Pereira em todo o lado: está na televisão, nos jornais e livros e nessa nova forma de fazer rádio, o podcast. Passou vários anos a criar sketches para a rádio — e agora revela que equaciona voltar a acordar cedo para fazer a rubrica “Mixórdia de Temáticas”, na Rádio Comercial, durante um tempo.
Em entrevista a Magda Cruz, fala sobre o novo livro “O que é que eu estou aqui a fazer – João Francisco Gomes conversa com Ricardo Araújo Pereira sobre Deus, a fé, o humor e a morte” (editado pela Tinta-da-China), sobre o seu interesse em colecionar diferentes Bíblias e do pouco interesse que o cardeal Tolentino Mendonça tem em se tornar papa (e de como isso faz dele um bom candidato a substituir Francisco).
Neste episódio do podcast “Ponto Final, Parágrafo”, o comediante recorda várias histórias que inclui nos dois volumes de “Coisa que não Edifica nem Destrói”, que surgem do podcast homónimo de Ricardo, na SIC, e reflete sobre o papel da crónica humorística no espaço mediático.
Enquanto coordenador da coleção de Literatura de Humor da Tinta-da-China, que já editou livros de Dickens, de Diderot e de Mark Twain, exemplo, revela que títulos gostava de ver publicados.
Quanto a uma futura biografia do humorista, diz que não é uma realidade, apesar de já ter sido abordado para isso. Não por ser cedo traçar o retrato de vida de Ricardo, mas por achar que seria desinteressante.
Magda Cruz: É dono de inúmeras bíblias. É um facto. Está a par de que a história é sempre a mesma ou está à espera de que haja uma sequela quando compra uma bíblia nova?
Ricardo Araújo Pereira: [risos] Sim, realmente estou a par. Não espero ser surpreendido pelas sucessivas Bíblias que vou adquirindo. Para já, elas são diferentes entre si, no sentido em que, por exemplo, a Bíblia das Igrejas Protestantes é ligeiramente diferente da Bíblia Católica.
MC: As diferenças é o tira e põe livros.
RAP: Exatamente, eles reorganizam os livros. Alguns excluem. Depois, a Bíblia Hebraica, a Bíblia dos Judeus, que é apenas composta por aquilo a que os cristãos chamam Antigo Testamento. Mas há outra coisa que é as traduções são muito diferentes.
MC: Compra as do professor Frederico Lourenço?
RAP: Exatamente, as do professor Frederico Lourenço. Ainda no outro dia lhe perguntei quando é que sai o Pentateuco porque ele está a trabalhar nisso. Lá está, as próprias traduções… Por exemplo, a Bíblia do King James, ou seja, a Bíblia que o rei Jaime mandou traduzir, foi traduzida por uma equipa de pessoas e mesmo quando há óbvios erros de tradução, esses erros fizeram o seu caminho culturalmente, ou seja, impuseram-se culturalmente, e portanto, passaram a ser… Repare, por exemplo, os tradutores da Bíblia hoje usam outras… Sabe aquela cadência a que nós estamos habituados na Bíblia que é “E Deus viu que isso era bom…”, “E Deus…”, “E…”, “E…”, “E…”. Hoje, os tradutores da Bíblia não repetem, esforçam-se para não repetir, para diversificar. No entanto, o Hemingway, quando a gente lê o Hemingway, a gente percebe que ele está a tentar aproximar-se do tom bíblico, com os “e”, porque ele tem objetivo, que é fazer com que aquilo que ele escreve tenha um tom, digamos, ancestral e uma autoridade que a Bíblia também tem. É só um dos exemplos de como algumas traduções da Bíblia produzem efeito cultural, mesmo quando não estão, assim, diremos, rigorosamente traduzidas, mesmo alguns erros produzem esse efeito.

MC: Neste momento em que estamos a gravar, sabemos que o Papa Francisco está hospitalizado. Desejamos-lhe as melhoras, claro. Tem sido discutida a possibilidade de o cardeal Tolentino Mendonça ser o sucessor. Acha que o facto de Tolentino ter casado o Ricardo dá-lhe boas hipóteses no futuro conclave?
RAP: Eu espero que eles lá no Vaticano não saibam isso, porque isso parece-me que seria razão para excluir o padre Tolentino. No outro dia estávamos em Roma e eu disse ao padre Tolentino que estávamos lá e ele, muito simpaticamente, como é costume, disse-me para quando nós acabássemos a visita ao Vaticano, quando estivéssemos na Capela Sistina, lhe darmos um toque. E pronto, lá apareceu ele.
MC: Vindo de uma porta…
RAP: Vindo de uma porta, sim, exatamente, Lá de uns bastidores a que ninguém tem acesso. Bastidores esses aos quais ele nos levou, gentilmente. E lembro-me de que estávamos na Capela Sistina e lá há uma porta, que é a porta para… Acho que se chama assim, para a Sala das Lágrimas, que é chamada assim porque é o sítio para onde o Papa recém-eleito vai vestir-se assim que sabe que é Papa. E o padre Tolentino disse, com aquele tom tranquilo dele: “É para ali que vai o ser humano que tem o azar de ser escolhido. [risos]
MC: Portanto, não é um cargo que ele cobice muito.
RAP: Não sei exatamente quais foram as palavras, mas percebia-se que era o ser humano sobre o qual vai recair esse fardo terrível. Basicamente, era o que ele estava a dizer. E, portanto, acho que ninguém nega que é um fardo bastante pesado, ser escolhido como Papa. Também nunca vi o padre Tolentino fazer a campanha eleitoral para ser o próximo.
MC: Não sei se viu o filme “Conclave”.
RAP: Vi, vi.
MC: No filme, eles dizem que quem tem vontade de ser em princípio não será.
RAP: Exatamente. Por acaso, eu acho que isso seria bom método. Se uma pessoa está muito interessada em ser, em princípio é desqualificada. Lá está. Isso é desagradável para o padre Tolentino porque ele não parece nada interessado em ser.

MC: Como dissemos, o agora cardeal Tolentino Mendonça casou o Ricardo. Ter um padre que concordasse que podermos rir de Deus era critério de seleção?
RAP: Não. Quer dizer, na altura isso não… Eu conheço o padre Tolentino há uns 30 anos, não é? E ele era capelão da Universidade Católica, quando eu lá andei, embora ele nunca o tenha dito claramente, ou pelo menos tão claramente como o Papa disse naquele dia que os humoristas lá foram… Quer dizer, nós percebíamos pela disposição do padre Tolentino que tipo de católico é que ele era. E que não era, de modo algum, o Torquemada. Não era isso de certeza absoluta. Mas devo dizer-lhe que, sim, que quando o Papa proferiu aquelas palavras no Vaticano, aquilo foi uma coisa muito surpreendente.
MC: E o Ricardo estava bastante perto dele quando ele falou.
RAP: Exatamente, estava. Eu presenciei esse momento histórico. O Papa diz as palavras “Podemos rir de Deus? Sim”. Eu não sei se alguma vez aquelas palavras foram ditas no Vaticano. Duvido. E por um Papa tenho mais dúvidas ainda. Por isso, foi realmente um momento histórico.
MC: Olhando agora para este livro que temos aqui à nossa frente, O que é que eu estou aqui a fazer, para o livro o Ricardo e o jornalista João Francisco Gomes conversaram por cinco vezes, no total de cerca de oito horas. Há uma das conversas em que têm um padre junto de vós, portanto, mais interessante ainda se torna. Queria perguntar-lhe se se preparava de alguma forma para o conjunto das conversas ou o que lemos é o conjunto de conhecimento adquirido do Ricardo. Nota-se que conhece bem a palavra de Deus, que sabe as parábolas.
RAP: Sim, isso joga contra mim, como sabe. Não sei se conhece… Eu gosto imenso do padre António Vieira. Acho uma coisa mesmo… Quer dizer, não é original a minha perspectiva sobre o facto do padre António Vieira ter um português absolutamente impecável. O sermão de Santo António aos Peixes começa com o padre António Vieira a citar aquele momento em que Jesus diz aos pregadores “Vós sois o sal da terra”. O sal tem como missão evitar a corrupção, não é? E, portanto, os pregadores têm a missão que o sal tem, que é evitar a corrupção, espalhando a palavra de Deus. E a certa altura, ele diz, citando Jesus Cristo, que às vezes o sal não salga ou a terra não se deixa salgar. E esse é o meu caso. Eu sou terra que não se deixa salgar. Nenhuma das duas hipóteses é boa.
MC: Então fica-me mal perguntar se no final da conversa ficou mais convertido ao Cristianismo.
RAP: Não fiquei, não fiquei. Eu acho que isso não acontecerá. Eu não sei se é crente, mas imagino que…
MC: Estou do seu lado.
RAP: Pois, não sendo crente, eu imagino que há qualquer coisa íntima que acontece e que eu não recebi, que eu não tenho. Mas respondendo à sua pergunta, não houve grande preparação. A ideia do livro, é preciso dizer, foi do João Francisco Gomes, o jornalista do Observador.
MC: Sim, sim. Eu apresentei como seu livro, mas o Ricardo é “apenas” o entrevistado.
RAP: Exatamente, o João é que teve a ideia, é que concebeu todas as perguntas e o caminho que o livro iria levar.
MC: Ele que é muito interessado por Fé. É o jornalista no Observador que trata dos assuntos religiosos.

RAP: O que ele disse foi que tinha visto que eu tinha interesse por estas matérias. Volta e meia há um vídeo meu que aparece a falar não sei onde, na Capela do Rato…
MC: É o ateu de serviço.
RAP: O ateu de serviço, exatamente. É o que eu digo sempre. Estou sempre a ir… Parece uma anedota, não é? Às vezes é: debate. E é o Sheik Munir, uma vez era o padre Tolentino e o ateu de serviço. Costumo ser eu. Faço muitas presenças em igrejas evangélicas. No outro dia, fui a um podcast na Antena 1, acho eu, que é sobre isso. Lá está, mais uma vez o início de uma anedota. Está um católico, um judeu e muçulmano e eles convidaram o ateu. E é isso. Mas é uma coisa que me interessa sobretudo como… O mesmo interesse que nós temos na Mitologia Clássica, por exemplo. Nós às vezes quando falamos de mitos, nós percebemos que aquilo são histórias com que eles, com que pessoas que viveram uns milénios antes de nós, estavam a tentar perceber as mesmas coisas que nós. E na tentativa de as perceber, contaram histórias. E essas histórias têm o seu quê de, digamos, de primitivo, no melhor sentido da palavra, não é? Por exemplo, não é por acaso que o Freud vai buscar o Édipo para justificar um impulso que ele identifica que é radicalmente humano, não é? E por acaso, enfim, erradamente quanto a mim, porque o Édipo, como sabe, ele mata o pai sem saber que é o pai. Ele mata o pai numa altercação de trânsito. Eu acho que o mito era mais… O “Complexo de Édipo” se chamava mais rigorosamente “Complexo de taxista”, porque, no fundo, aquilo é uma zaragata no trânsito. Ele não faz a mínima ideia que está a matar o pai, coitado. E é isso. Na Bíblia, é a mesma coisa. Repare, o livro do Génesis começa com não uma, mas duas histórias sobre a criação. Duas. O modo, a palavra, como Deus é designado muda até. Ou seja, aquilo são duas fontes diferentes. E as pessoas que coligiram a Bíblia, que organizaram a Bíblia, as pessoas que disseram “Estes livros entram, vão ser os livros canónicos, estes não vão entrar” não conseguiram escolher. Aliás, acharam que aquelas duas histórias eram as duas importantes. E são. E, portanto, o interesse na Bíblia tem a ver com isso, ou seja, com o mesmo interesse que a gente tem nos textos da Antiguidade Clássica, que nos explicam, ainda hoje, e depois tem a ver com várias outras coisas que têm especificamente a ver com a Bíblia, que é o Sísifo, o Édipo, Perseu. Embora sejam uma espécie de substrato da nossa cultura, mas não tiveram o impacto cultural tão profundo como a Bíblia teve. E aí, portanto, Bíblia tem ainda além desse, mais um interesse acrescido.
MC: Queria pegar na crença. O Ricardo ainda agora a mencionou. Enquanto eu preparava esta entrevista fui desanuviar a ler um livros de poesia e cruzei-me com um poema de José Jorge Letria. Era “O Livro Branco da Melancolia”, um livro editado pela Quetzal, em 2001. Queria ler uns versos do poema “Quem me fez sem fé”. Vou ler uns versos e depois o Ricardo comentava o enunciado, como se fosse uma prova nacional. “Talvez Deus se tenha esquecido de mim / na hora de distribuir pelos humanos / a oferenda imperecível da submissão e da crença.” Ora, se Deus nos concede a graça de acreditarmos Nele, porque é que acha que ele se esqueceu de si?
RAP: É uma boa pergunta. Muitas vezes, as pessoas olham para os ateus como arrogantes, no sentido em que a rejeição de Deus, chamamos-lhe assim, é reveladora dessa arrogância. Como se uma pessoa estivesse, no fundo, a dizer “Eu não preciso de Deus” e até a simples ideia de “Não acredito”. “Quem és tu para não acreditar em Deus Todo-Poderoso, onisciente, omnipresente, omnipotente? Eu confesso que me sinto mais inclinado a acreditar no contrário. Acho que é exercício de humildade uma pessoa olhar para si própria… É o que eu faço muitas vezes. Eu olho para mim próprio, examino-me, e verifico que é muito improvável que uma divindade tenha estado envolvida na concepção disto. Não me parece que seja provável. Já para não falar no resto do mundo. É uma obra que tem realmente aspectos maravilhosos. Mas se houvesse um TripAdvisor do planeta, eu não sei se dava mais do que três estrelas. O que é que acha, Magda?
MC: Sim, três. É aquele hotel limpo, mas que peca um pouco pela mobília, o pequeno-almoço é pago à parte…
RAP: É isso. Tem aspectos muito positivos. Realmente, o mar é muito bonito e tal.
MC: Mas a fome, a guerra, a doença…
RAP: Exato. Isso aborrece-me um bocado… O facto de haver uma ala pediátrica no IPO… Quer dizer, um ser omnipotente talvez pudesse ter atalhado para que isso não acontecesse.
MC: Até o papa adoece.
RAP: Exato, coitado. Mesmo aquela ideia de que… Repare. A gente tem de comer, não é? Por exemplo, os animais também. A selva, a savana, seja o que for, é um espetáculo bastante cruel de… Porquê? Porquê inventar bichos que depois tem de se comer uns aos outros para sobreviver? Enfim… Não sou omnipotente, como creio que a Magda…
MC: Já tinha percebido.
RAP: Já reparou. Quer dizer, talvez tivesse feito as coisas de uma maneira diferente. Tínhamos menos tsunamis, acho eu.
MC: Agora andamos a ser assolados por sismos.

MC: Queria virar um pouco a conversa para a crónica. Já publicou dois volumes de “Coisa que não Edifica nem Destrói”. Temos aqui os dois volumes à nossa frente. Devemos olhar para estes livros como livros de crónicas ou de ensaios?
RAP: Isso é uma boa pergunta. Eu não diria que são crónicas, mas também não lhes chamaria ensaios porque essa palavra tem um peso que eu costumo rejeitar.
MC: São textinhos? [com voz fininha]
RAP: [riso] É isso, é isso. Eu acho que é isso e dito exatamente com essa voz, com a voz como que os disse. É isso, sim. Eu não sei se olhou para isso, mas isso sou eu a falar comigo próprio sobre coisas que me interessam, que interessam muito, que é improvável que interessem muito a outras pessoas, mas que… Quem é quer ouvir falar sobre São Basílio de Cesareia e sobre o que ele achava sobre o facto de os seres humanos rirem. Por exemplo, há aqui um capítulo… Repare, eu acho isto fascinante, mas imagino que outras pessoas não achem tanto. Eu comprei dois volumes de estudos patrísticos, ou seja, são estudos académicos sobre os pais da Igreja, e outras coisas. E há um debate fascinante, no século, eu vou dizer século IV, agora não tenho a certeza se é isso ou não.
MC: Como eu já disse ao Ricardo, eu perdi o primeiro volume, portanto só li o segundo.
RAP: Mas eu acho que é nesse, precisamente. Deve ser no primeiro volume, exato. É um debate fascinante sobre se Jesus Cristo fez… É o capítulo 3, que se chama “Sobre xixi e cocó”.
MC: Um título…
RAP: Está a ver? Por isso é que eu estava com algum pudor em chamar ensaios. Chama-se “Sobre xixi e cocó” por várias razões. O xixi e o cocó são centrais na comédia, porque têm de facto muita graça, neste sentido, no facto de nós sermos um bicho que é capaz de coisas admiráveis, como catedrais, como escrever um soneto, mas também da digestão, fazer a digestão e…
MC: Todos evacuamos.
RAP: Exatamente. E houve um debate… É disso que eu falo neste terceiro capítulo. Já agora, pode ser que os seus ouvintes tenham interesse. Houve um debate fascinante sobre se Jesus Cristo fez ou não fez a digestão. Basicamente é sobre se Jesus Cristo fez cocó. E o debate era…
MC: Que é um degrau acima sobre se Jesus ria.
RAP: Exatamente, exatamente. E não sei se não estarão relacionados, sim. Porque, repare, o debate era entre pessoas que se acusavam mutuamente de heresia. Ou seja, há pessoas que dizem assim “Jesus Cristo é Deus feito homem e por isso é homem. E sendo homem, fez tudo o nós fazemos. Negá-lo é ser herege.” Há outros que dizem, “Não, não. Dizer que Jesus Cristo fez cocó é que é ser herege, porque Jesus Cristo é Deus e por isso…”
MC: Mas ele não aguentou durante 33 anos…
RAP: A questão é essa. Há uma terceira via. Durante esse debate, havia pessoas que diziam assim “Bom, Jesus Cristo é humano e não há dúvidas disso, até porque não pode haver, porque isso é dogma, Jesus Cristo é humano, mas assim como ele não pecou, também não defecou.” O que me interessa, antes de tudo, se calhar, é o facto de alguém se pôr a pensar nisto. De alguém se pôr a pensar sobre se Jesus Cristo era um ser humano exatamente igual a nós ou não, e do fator decisivo para isso ser, por exemplo, estas funções, digamos, menos nobres do corpo. Essas funções menos nobres do corpo são interessantíssimas para a comédia, precisamente por causa do contraste que existe entre seres que estão acima dos animais e que estão quase a tocar no divino. São capazes daquilo que eu disse há pouco, de coisas admiráveis, mas não deixam de fazer cocó. Um dos trabalhos do humorista, acho eu, é lembrar as pessoas: “Não te esqueças que tu fazes cocó. Não penses que és assim tão… Percebo que te achas maravilhoso, tens uma inteligência que é muito acima do resto da criação. Não te esqueças que continues a fazer cocó.” Acho que é uma coisa boa para a gente manter presente.

MC: E uma das maneiras como os humoristas lembram os leitores ou os ouvintes de que fazem cocó é a crónica humorística. Queria lhe perguntar se sente que se tem perdido o género de crónica e, depois, humorística.
RAP: Sim, talvez. Sabe, a crónica era um espaço no jornal que servia… É um género completamente híbrido porque a gente pode chamar crónica a quase qualquer coisa. Pode ser eu a contar o que é me aconteceu ontem, mas também pode ser eu a falar sobre o primeiro-ministro, mas também pode ser alguém a falar sobre moscas. Ou seja…
MC: Em princípio, o Miguel Esteves Cardoso já escreveu essas três.
RAP: Exatamente. Ele foi uma espécie de… Por exemplo, A gente pega n’ A Causa das Coisas, em que isso talvez seja mais claro, e ele é uma espécie de enciclopedista de, por exemplo, às vezes, de minudências. Aliás, é até um dos primeiros textos d’ A Causa das Coisas, que está organizada por ordem alfabética, se bem me lembro, e um dos primeiros textos é “Alcatifa”. E é ele a falar sobre… É uma crónica sobre alcatifa. Isso é tudo válido. Por exemplo, há uma crónica chamada “Lista”, em que ele faz um exercício que é uma espécie de clássico da comédia, o Robert Bensley também tinha feito, que é escrever uma recensão crítica, como se fosse de um romance, da lista telefónica. Tem imensas personagens, como sabe… Quer dizer, se calhar já não sabe, porque provavelmente já nasceu…
MC: Ainda convivi com uma ou duas.
RAP: Ainda conviveu com listas telefónicas. E é isso. Por acaso, é um exercício humorístico interessante: descrever uma recensão crítica da lista telefónica. Está ver? E isso é uma crónica.

MC: E a crónica humorística tem-se perdido?
RAP: Repare, eu creio que continua a haver procura para o género. Ainda bem, acho eu. Eu escrevo para dois continentes. Não é mau. [risos] Quer dizer, não me posso queixar de falta de procura. Eu não sei se já experimentou, já fez experiências com o Chat GPT e outros produtos do género.
MC: Muito pouco porque gasta muita água.
RAP: Ah, aquilo gasta água?
MC: Gasta, gasta. Por cada pergunta são dois copos de água.
RAP: A sério? Eu estou farto de gastar água.
MC: Pois, saiu um estudo que dizia que a Inteligência Artificial gasta quatro vezes mais água do que era previsto. Mas é água bem empregada.
RAP: Não é… Para aquilo que eu faço, não é. Mas a questão é: ele não tem capacidade para fazer… Ele não tem graça nenhuma, digamos assim.
MC: Não é um bom cronista.
RAP: Nem humorista. Eu acho que, pelo menos por enquanto, não é uma ameaça. Pode ser é um bom instrumento de trabalho. Por exemplo, quando a gente precisa de… Por exemplo, é muito frequente quando estamos a escrever um texto, vamos dizer, sobre alcatifa, dá-me muito jeito ter várias palavras de…
MC: Sinónimos.
RAP: Não apenas sinónimos. Ou seja, palavras do campo lexical. Aliás, não apenas do campo lexical, mas do campo conceptual. Compreende? Ou seja: chão, cola, tapete… Há uns dicionários, que hoje não se vêem muito, mas eu tenho vários desses. Chama-se dicionário analógico. Não sei se conhece isto. O dicionário analógico tem uma parte que é dicionário igual aos outros: está lá escrito “casa” e depois diz “substantivo feminino, onde as pessoas vivem”, diz a definição. Mas depois remete para um sítio que diz isto que eu estou a dizer. Casa: alicerce, cal, estuque, pedreiro… Ou seja, palavras do campo conceptual e não apenas do campo lexical da palavra.
MC: E isso dá ideias ao cronista.
RAP: Exatamente, isso é bom. E o Chat GPT… Mas acho que o próprio Google já fazia mais ou menos isso, não é? Talvez não, talvez o chat GPT seja mais eficaz.
MC: Houve aqui uma crónica há umas duas ou três semanas em que o Ricardo usou o Chat GPT.
RAP: Sim, andei a fazer-lhe perguntas e andei a tentar virá-lo contra o Deep Seek. Tentei virar os dois um contra o outro.
MC: E houve um que ganhou.
RAP: Sim, exatamente. Houve um que ganhou porque respondeu corretamente à pergunta “Qual é o maior clube português?”. E foram os chineses, curiosamente. Não sei que tecnologia que eles têm lá, que conseguiu apurar isso, mas parabéns. Sabe o que fiz no outro dia? Não sei se conhecem o poema do Bocage. É um soneto muito engraçado. É obsceno. Não sei se os seus ouvintes estão preparados. É um soneto que é uma adivinha. É aquele que começa: “É pau, e rei dos paus, não marmeleiro. / Bem que duas gamboas lhe lobrigo; / Dá leite, sem ser arvore de figo, / Da glande o fruto tem, sem ser sobreiro”. São assim várias pistas e o último terceto é “Para carvalho ser falta-lhe um u;” Porque o U e o V são a mesma letra, em Latim”. “Para carvalho ser falta-lhe um u; / Adivinhem agora que pau seja, ( E quem adivinhar meta-o…” Enfim, já percebeu onde é o Bocage… E eu pus o soneto nos Chat GPT e disse: “Interpreta o seguinte soneto e fornece uma chave para a pergunta final.” E ele não percebeu. Disse que era um pé de cabra e não sei quê. Eu tive que ir verso por verso a dizer “Não, repara, ‘À roda da raiz cria carqueja’. Estás a perceber? Estes são os pelos púbicos. E repara que quando ele diz isto.. E ele: “Ah, sim, tem razão, é realmente o pénis. A solução é o pénis, sim, sim.” Sempre que eu descubro que os Chat GPT tem falências, eu fico muito satisfeito.
MC: Porque pode manter o seu trabalho.
RAP: Exato. Dizem-me que ele tem capacidade para aprender, o que é meio inquietante.
MC: Sim, quanto mais o utilizarmos, mais inteligente vai ficar.

RAP: É um bocado perturbador isso, mas até agora eu não vi que ele soubesse… Quer dizer, que ele tenha graça. Até porque eu acho que ele está programado para, digamos, ele tem muita dificuldade em fazer aquilo que hoje se chama ofender. Ou seja, pede muita desculpa, rejeita enveredar por caminhos que a gente lhe sugira e ele diz “Não, eu isso não faço porque isso é desrespeitoso”. Ora, na comédia a gente tem a consciência de que o que está a dizer, muitas vezes, tem o objetivo de… O subtexto é a pergunta “Viste o que eu fiz? Levei-te a acreditar que ia dizer uma coisa muito sensata e depois no fim disse a coisa mais insensata que me lembrei.” Ele é incapaz de dizer coisas muito insensatas porque acha que isso vai ofender pessoas.
MC: Então, se o Chat GPT não escreve crónica humorística temos de nos virar para os humoristas. Fiz aqui um levantamento. Temos vários humoristas a escrever nos jornais nacionais. O Ricardo e o Manuel Cardoso, no Expresso. A Cátia Domingues, no Jornal de Notícias. O Zé Diogo Quintela e o Tiago Dores no Observador. O Bruno Nogueira na Sábado. E lembrei-me também da Susana Romana, na Notícias Magazine. Deste levantamento e desta nova geração, só o Manuel e a Cátia é que estão a escrever crónica humorística. Acha que os outros cronistas estão a fugir deste género?
RAP: Não, quer dizer, eu não sei se… Eu acho que a responsabilidade está do lado dos jornais, que não estão a convidar pessoas dessa geração. A Cátia e o Manuel são dois bons exemplos. Mas eu acho que a escassez tem a ver com o facto de os jornais não convidarem mais do que o facto dessa geração, tem… Por exemplo, o Manuel Cardoso tem 30 anos. Tem menos 20 anos do que eu. A Cátia também deve ter pouco mais. Eu acho que essa geração talvez esteja a chegar agora aos média tradicionais, provavelmente. Não sei se escrevem…
MC: Pois, porque na rádio ainda há um ou outro a fazer paródia. Não sei se chamaria crónica, mas…
RAP: É isto de que falámos há pouco, ou seja, destes volumes de que me perguntou se eram crónicas ou ensaios, não são crónicas certamente, são…E ensaios também duvido que sejam. Ah, já sei! Já tínhamos chegado à conclusão do que eram: eram textinhos [lê com voz fininha].
MC: Ainda sobre a crónica, e prometo largar o tema, sente que a sua forma de escrever crónica humorística fez escola? Ou seja, há uma geração não necessariamente a mais nova a escrever como o Ricardo escreve?
RAP: Epá, duvido. Acho que não. Acho que se as pessoas tiverem juízo, afastam-se o mais possível.
MC: Acho que oito em dez dirão que ouviam a “Mixórdia de Temáticas”, na Rádio Comercial.
RAP: É possível, sim. Que também não exatamente crónicas, repare.
MC: Rábulas, se calhar.
RAP: [risos] Sim, rábulas.
MC: Teve a oportunidade de fazer uma agora, no Dia Mundial da Rádio. Gostei muito de ouvir. E com o Manuel Cardoso, na Rádio Comercial.
RAP: Pois foi! E eu fiquei satisfeitíssimo porque…
MC: E tinha que ver com paus.
RAP: Pois tinha a ver com o pau de uma sachola, de facto, com o cabo. Eu gosto imenso de fazer aquilo, divirto-me imenso com os meus amigos lá. Aquilo, de facto, é doloroso por causa do horário e porque obriga a todos os dias ter uma coisa diferente. Mas eu voltei a tomar o gosto àquilo e agora, no outro dia disse ao [Pedro] Ribeiro [diretor de Programação da Rádio Comercial], “Olha que eu não sei se não vou esforçar-me para me organizar e voltar durante período.”
MC: Isso seria incrível.
RAP: E ele começou aos gritos, sim, começou a gritar. E eu disse “Tem calma, por favor.” Mas sim, tenho essa… Agora estou a pensar nisso. Não posso prometer, mas gostava de fazer isso.
Ouça a restante entrevista no episódio do “Ponto Final, Parágrafo”: