Mia Couto: “eu sou as histórias que contenho”
Tarde luminosa no último dia de Tinto no Branco – Festival Literário de Viseu para receber Mia Couto. O escritor moçambicano foi entrevistado por Tito Couto perante plateia lotada.
As palavras de cristal foram servidas com um vinho rosė do Dão Quinta do Perdigão. Já com o pé do copo entre os dedos, o escritor falou sobre a sua obra na “Conversa de Vida” programada para a 4ª edição deste festival.
Começar pelo fim. Foi assim com Mia Couto.
O último livro, “A Água e a Águia”, é um livro infantil e remete para um universo muito querido: o da Natureza. Ou não fosse Mia Couto biólogo de formação.
Segundo o autor nascido na Beira, o seu mais recente livro não nasceu de uma ideia clara. Nem este nem qualquer outro. Há uma nebulosa que o faz entrar para descobrir as personagens e as correspondentes histórias. “Escrevo para me conhecer e para ver o que o mundo tem a ver comigo”. Em Moçambique, a cultura não está separada da Natureza, o que permite uma visão holística do mundo.
Quando escreveu “A Água e a Águia” não estava a escrever para crianças, pois tem dificuldades em dividir a prosa em faixas etárias. Considera, inclusivamente, falsa a própria fronteira entre infância e idade adulta. Muitas vezes os pais de Mia eram crianças como ele, brincando e contando histórias.
Vê com nostalgia o facto de as brincadeiras não serem mais na rua, com as crianças a chegarem sujas depois de correr. “A rua já não pertence à infância”, afirmou.
Em casa havia uma disputa de encantamentos. O pai não era só poeta, ele era poesia. A mãe era uma contadora de histórias. Ela transportava a imaginação. Pai e Mãe produziam momentos mágicos, junto à cabeceira da cama. “Eram só meus. Contar histórias é coisa muito séria, solene”.
Não teria interesse em contar a história da sua vida. O livro, para Mia Couto, é mais importante do que o escritor. Além disso, considera a lembrança como sendo mentirosa. O facto de ter má memória permite-lhe não saber se o que ouve é mentira ou verdade. A ficção é simbiótica da realidade, muitas vezes numa linguagem sonhada, alimentada pelo erro. Esse erro, hoje, parece ser inoculado pela defesa da funcionalidade da linguagem.
A oralidade cumpre mais do que uma função; é um prolongamento do nosso corpo e do nosso pensamento. A oralidade autoriza, ao contrário da escrita sempre tão regulada.
A escola não ajuda muito, pois ensina a língua como se fosse matemática, uma ferramenta para dominar o mundo.
“O erro permite coisas extraordinárias. Há uma dimensão poética que existe no erro.”
Empobrece-se o pensamento que está adjacente à língua e às histórias. Podemos dizer a nossa profissão, a nossa idade e o nosso nome, mas a identidade, segundo Mia Couto, está nas histórias.
“Eu sou as histórias que contenho”.
E foi com as histórias contadas pelo autor que o público o pôde conhecer melhor durante uma cerca de uma hora.
A última mesa do festival recebeu Filinto Elísio e Francisco José Viegas. Começou quando a longa fila para os autógrafos de Mia Couto ainda se mantinha.
Numa conversa moderada por Jorge Sobrado, os dois autores falaram sobre “Literatura e Gastronomia: Que histórias precisamos para fazer um bom prato? Ou que ingredientes para escrever uma boa história?” Ainda no palco e em simultâneo, foi cozinhada (e explicada) uma cachupa cabo verdiana. Um casamento entre a culinária de Cabo Verde e os vinhos do Dão.
Desde “Cela: 1 oficina de escrita criativa”, com Filipa Melo, no dia 07, até ao concerto “Aurora Brava”, que encerrou o festival no dia 9, o Tinto no Branco compôs-se de apresentações de livros, conversas, “workshops”, oficinas, “cosplay”, concertos, espectáculo infantil e a mencionada entrevista de vida com Mia Couto. Três dias de literatura integrados no festival “Vinhos de Inverno”, no Solar do Vinho do Dão.