Mimos musicais
Já estou a encarar a folha em branco há alguns minutos, tentando descobrir um mote assertivo para esta crónica. Existem vários assuntos intrigantes, sobre os quais irei reflectir convosco. Todavia todos requerem uma pesquisa prévia e um tempo que, felizmente, não disponho neste momento. Ou seja:
Peço-vos desculpa e peço-vos permissão para ser um pouco imediatista (se calhar a palavra certa é prático) e para cobrir esta página com variadas sugestões de audição. São exemplos musicais surpreendentes, evidências de qualidade, sofisticação e de sedução artística. Estas sugestões não encabeçam um tema dominante, uma consonância de pretextos criativos – são apenas propostas musicais fascinantes e eventuais alavancas para artigos futuros.
Assim sendo, inicio esta viagem com “A Woman’s Journey”, disco de 2016/17 pela dupla francesa Madeleine & Salomon.
Madeleine & Salomon são um duo delicado que explora o cancioneiro com subtileza. Nas suas versões limpas e intimistas há uma pertinência indispensável.
Todas as canções deste álbum têm uma particularidade. Uma singularidade que as distingue, que as transforma. Reparem no crescendo final de “Save the Children”, em que dois acordes no piano são repetidos exaustivamente enquanto aumentam de dimensão com a inclusão de muitos outros sons curiosos: flautas sintetizadas, um solo improvisado num sintetizador distante, spoken word, uivos etc. Ou atentem ao inesperado “Medley: The End of Silence / Mercedez Benz” deste dueto de voz e piano.
Um extraordinário exemplo, entre outros que tenho vindo a encontrar, de irreverência, de frescura, dentro do espectro da música clássica é o espectáculo “Goldberg Variations – ternary patterns for insomnia” pela companhia de dança Andersson Dance e o Scottish Ensemble. Uma interpretação ousada e urgente de uma das obras mais conceituadas de J.S. Bach.
É bom subverter os rituais antiquados, os códigos restrictivos que ainda hoje definem a maioria dos concertos de música clássica. Porém, esta evolução tem que acontecer dentro do processo artístico. Ou seja, com propostas que estimulem uma perspectiva diferente sobre as peças executadas, que motivem um diálogo íntegro, rigoroso e subjectivo entre a tradição e a contemporaneidade. E nunca através de plataformas superficiais como a associação básica entre um DJ e um quarteto de cordas, onde se acciona um beat vulgar por cima de um quarteto de Mozart; ou um beberete social que permita ao público embebedar-se enquanto caminha entre as estantes e os músicos que tocam uma sinfonia de Beethoven.
A exuberância, a espontaneidade, a diversão, a festa na arte e da arte são metas de expressão extremamente exigentes! Merecem a nossa máxima dedicação e talento.
A composição “Serenity 2.0” de Ben Nobuto, apresentada pelo Manchester Collective, foi inventada há uns dias atrás. Esta transmite bem a dispersão que contamina, hoje em dia, a nossa atenção. A peça é bastante explícita e, no entanto, muito articulada e incisiva na observação social que relata. Deliciem-se com este zapping musical.
Conheci a Esperanza Spalding numa fila para entrar no 55 Bar em Nova Iorque. Nessa altura, há quase 15 anos atrás, a Esperanza já era uma figura incontestável do jazz norte americano, apesar de ser muito nova. O que é maravilhoso no percurso desta compositora/cantora/contrabaixista/imaginadora de múltiplos atrevimentos belos é que, ao contrário de outros jovens cuja excepcionalidade foi descoberta cedo, esta não parou de arriscar. Poderia ter-se encostado à sua fama embrionária, publicar uma série infindável de álbuns aborrecidos, fechados na estética jazzística mais convencional. Porém, Esperanza persiste em levantar voo e em oferecer-nos algo sempre genuíno e diferente.
Finalmente, termino esta crónica com “HandsFree” da compositora BBC Anna Meredith. A inglesa é também uma prestigiada cantautora pop, tendo inclusivamente actuado no Tiny Desk Concert com a sua banda. “Paramour” é um dos meus temas favoritos desta sua faceta mais ligeira. O vídeo também é original.
Porém, antes de ter editado “Varmints” em 2016, Meredith arrebatou os públicos da música erudita com várias obras corajosas. “HandsFree” estrutura-se dentro de uma lógica minimalista, onde certos padrões rítmicos são repetidos, sofrendo as alterações precisas para que a música progrida ao longo da sua interpretação. As mudanças de movimento ou de zona de contacto (no corpo) determinam a orquestração, assim como as variações rítmicas que se complexificam ao longo da peça. No fundo, Anna desenhou uma coreografia que resulta em música. A junção absoluta entre som e movimento.
Eis uma interessante alternativa para a próxima vez que organizarem uma flashmob.
Espero que estes mimos musicais, estas carícias artísticas vos proporcionem novas descobertas e ideias. Bom proveito!